O Brasil é o país que tem o maior porcentual do mundo de habitantes que acreditam em Deus ou em um poder superior que governa o universo (89%), de acordo com o estudo Global Religion 2023, feito em 26 países, mas por aqui a fé tem uma característica bastante singular: aquilo no qual o brasileiro acredita ou a forma como ele exerce essa crença podem facilmente mudar, influenciados por fatores sociais, pessoais, ideológicos e, claro, espirituais. É o que mostra um levantamento pioneiro feito pelo instituto Brasilis, que se debruça sobre o comportamento da fé no país e detecta a ampla fluidez religiosa — embalada em parte pela busca disseminada da conversão de adeptos — e os motivos que levam a uma guinada na vida dos fiéis. O fenômeno ganha importância porque oferece uma nova perspectiva na crescente (e estratégica) disputa política pelo eleitorado religioso.
A mobilidade brasileira entre igrejas é algo tão grande quanto sua fé. Quase um terço dos pesquisados mudou de religião ao longo da vida, abandonando a vertente que lhe foi apresentada quando era criança. Um quinto dessas mudanças aconteceu de 2019 para cá, ajudando a alavancar o crescimento de evangélicos verificado nos últimos anos, tanto entre as denominações pentecostais (Assembleia de Deus, Universal do Reino de Deus e Renascer em Cristo, entre outras) quanto as não pentecostais (as mais tradicionais, como batista, presbiteriana, anglicana e adventista). Em 1940, eles eram apenas 2,7% da população — passaram a 22,2% em 2020 e a estimativa é que no recenseamento de 2022, cujo detalhamento por religião ainda não foi divulgado, já estejam em torno de 30%. A maioria das projeções aponta que essa vertente caminha para se tornar a religião majoritária no Brasil por volta de 2032, o que significaria que o próprio país está em vias de abandonar sua religião de nascimento. Essa fluidez tem um motivo: metade passou por alguma tentativa de conversão religiosa na vida, sendo 33% só no último ano.
Os caminhos que levam à conversão são muitos. A principal causa é a busca pela salvação, apontada como fator decisivo por 54% dos novos evangélicos pentecostais ouvidos pelo Brasilis. Há outros fatores mais terrenos: 43% dos católicos deixaram a fé que professavam por más experiências com o padre e 33% dos evangélicos não pentecostais perceberam que pensam diferente da igreja na qual exerciam sua espiritualidade. Outros motivos são o melhor espírito de convivência na nova casa e o fato de ter sido convidado por amigo ou parente. Temas morais também têm grande influência e passaram a estar mais presentes nos púlpitos.
É justamente nesse ponto que ocorre uma importante interseção entre a fé e a política. Os temas morais, em especial as pautas conservadoras, aproximam boa parte do eleitorado religioso com discursos mais à direita, o que deu gás à ascensão do bolsonarismo. Segundo a pesquisa, 40% dos fiéis disseram que seu líder falou de aborto e outros 33% dizem que já ouviram sobre união entre pessoas do mesmo sexo. Um quinto já presenciou seu padre ou pastor pedir voto e igual porcentual disse que eles levaram um candidato ao culto — esse número sobe para 30% entre os pentecostais. Como o mesmo indivíduo pode ter ideias conservadoras e progressistas, a estratégia para conquistá-lo depende de fazê-lo decidir com base em uma pauta específica. “A importância da mensagem na comunicação política não é mudar o que você pensa, mas falar sobre o que você pensa”, explica o cientista político Fabrício Fialho, um dos autores da pesquisa. Ou seja, quando um conservador quer angariar votos, não tenta mudar a opinião das pessoas sobre o aborto, mas fazer com que elas decidam o voto com base nisso, e não em outros temas.
Para conquistar o grande contingente religioso, cada corrente ideológica usa uma pregação distinta. A direita, ao priorizar temas morais, se aproxima dos líderes evangélicos mais fundamentalistas, que atraem multidões e se transformam em cabos eleitorais valorosos. Exemplo disso é o pastor Silas Malafaia, líder da igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, um dos principais defensores de Jair Bolsonaro, tanto no púlpito quanto na rua, como nos atos que ajudou a organizar para o ex-presidente na Avenida Paulista e em Copacabana. A esquerda tem feito concessões para atrair o público evangélico — ou ao menos mitigar a rejeição. Em outubro de 2022, na reta final da campanha, Lula divulgou uma “Carta aos Evangélicos”, recheada de versículos bíblicos, colocando na estante de méritos do PT o crescimento das igrejas e a defesa da liberdade religiosa. Agora, tem uma nova palavra, levada pelo advogado-geral da União, o evangélico Jorge Messias, que faz peregrinações por templos e emissoras dessa vertente para lembrar que programas sociais, como o Bolsa Família, são estratégicos para famílias de classes sociais majoritárias no evangelismo.
Apesar da intenção de acertar, o governo Lula segue criando problemas. Nas últimas semanas, gerou confusão ao regulamentar a ação de religiosos em presídios, um campo privilegiado de expansão das novas religiões. Entre outros pontos, a resolução do Ministério da Justiça proíbe exatamente a conquista de novos fiéis, por batismo ou conversão — ou seja, o preso tem direito à assistência religiosa, mas não pode ser apresentado a uma fé que não tenha. Líderes da poderosa Frente Parlamentar Evangélica bateram às portas do ministro Ricardo Lewandowski — uma reunião estava prevista para a última semana, mas acabou adiada por desencontros de agenda. “O erro está na raiz. A esquerda tem que fazer uma autocrítica”, alerta Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), um dos líderes da bancada, que tem 203 dos 513 deputados federais.
A dificuldade de diálogo com os evangélicos é histórica para as esquerdas, que sempre estiveram ligadas ao catolicismo. O PT, por exemplo, surgiu impulsionado pelo movimento operário, intelectuais de esquerda e também pelas chamadas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), núcleos de pregação católica espalhados pelo país que tiveram influência durante a ditadura e cuja pregação mirava mais temas sociais, econômicos e políticos. O jogo virou com a ascensão evangélica, a opção preferencial dessa vertente pela agenda conservadora nos costumes e a sua identificação com a ascensão de Bolsonaro em 2018.
Os evangélicos são o grupo religioso que tem o maior poder de articulação e engajamento por fatores endógenos à fé. Essa corrente sacramenta o princípio do belonging before believing (“pertencer antes de crer”), opera em um forte senso de comunidade, tem a conversão de novos fiéis como tarefa obrigatória e exige a obediência a um código de conduta, diferente dos católicos, que não exercem um controle tão intenso sobre o que os adeptos fazem fora da igreja. O pesquisador Stanley Bailey, da Universidade da Califórnia, fala em um “empreendedorismo religioso” praticado pelas correntes evangelistas. Enquanto o seminário católico dura oito anos e exige formação em teologia, um curso para se tornar pastor dura em média um ano. “Há a possibilidade de ganhar a vida trabalhando com isso, enquanto os trabalhos formais estão sumindo e não trazem mobilidade social”, diz o docente.
Talvez um dos poucos obstáculos à predominância dos evangélicos seja o crescimento acelerado dos sem-religião, principalmente entre os jovens. “Eles não são necessariamente ateus. Vão à igreja de vez em quando e frequentam cerimônias comuns”, diz Alberto Carlos Almeida, diretor do Brasilis. O grupo, porém, soma apenas 6% dos brasileiros. A maior probabilidade é a de que os evangélicos se tornem, de fato, a maioria no Brasil. “Estão mobilizados politicamente e criam uma comunidade moral mais coesa do que os católicos”, afirma Almeida.
Se a multiplicação evangélica e a mudança do perfil religioso brasileiro já eram algo determinante para o quadro político, a nova pesquisa mostra que há campo, ao menos em tese, para novos convencimentos e, portanto, para novas reviravoltas. A batalha pelos corações e mentes dos fiéis que se movem ainda está em andamento.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2024, edição nº 2893