Um acordo firmado com a Alemanha durante a ditadura militar deu início ao programa nuclear brasileiro. Ele previa a construção de quatro ou cinco usinas até 2030, mas saíram do papel ao longo das últimas décadas apenas as instalações de Angra 1 e 2. A pressão ambiental e os acidentes ocorridos em Chernobyl (Ucrânia), em 1986, e Fukushima (Japão), em 2011, fizeram algumas nações repensarem esse modelo. O maior símbolo disso foi a própria Alemanha, que, em abril, desligou as últimas três usinas do tipo em operação por lá. Ironicamente, enquanto o sócio europeu que nos ajudou a entrar na era nuclear tira os pés do negócio, o governo Lula retoma agora com força vários projetos importantes nesse setor.
Um dos exemplos dessa política envolve a usina de Angra 3, no Rio de Janeiro, cuja construção foi iniciada há quatro décadas e paralisada inúmeras vezes. Em 2015, acabou sendo suspensa em razão de investigações da Lava-Jato contra desvios na Eletronuclear, estatal que detém o monopólio da energia nuclear brasileira. As obras, que estão 60% concluídas, foram retomadas em novembro do ano passado e a sua finalização, segundo o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, é uma prioridade. A União aguarda a liberação de empréstimo de 20 bilhões de reais junto ao BNDES para concluir o projeto até 2029. Quando entrar em operação, ela será capaz de gerar mais de 12 milhões de megawatts-hora por ano, energia suficiente para abastecer Brasília e Belo Horizonte nesse mesmo período.
A exploração de urânio também está nos planos. O Brasil tem a sexta maior reserva do mundo, mas opera somente uma mina, em Caetité (BA), que extrai 400 toneladas por ano. Segundo o Plano Nacional de Mineração, o próximo passo será a construção de outra em Santa Quitéria (CE), com capacidade para 2 300 toneladas anuais — o suficiente para abastecer as usinas em Angra e exportar o excedente. O empreendimento, segundo a estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB), está em fase de licenciamento. Outro projeto do governo Lula é tirar do papel o Reator Multipropósito Brasileiro (RMB), parceria de 500 milhões de dólares entre Brasil e Argentina em Iperó (SP). O objetivo é atingir a autossuficiência na produção de radiofármacos, medicamentos essenciais para o diagnóstico de câncer e que são, em grande parte, importados. “O preenchimento dessas lacunas no setor de saúde representa uma oportunidade de desenvolvimento econômico para o país”, diz a ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos. Em janeiro, ela foi à Argentina com Lula para discutir o projeto. Segundo o ministério, as obras devem começar em 2024 — a previsão é que o reator esteja operante em 2028. O modelo é semelhante ao OPAL, que opera na Austrália desde 2007 e que foi implantado pela empresa argentina Invap, a mesma parceira do empreendimento brasileiro.
Não chega a ser surpreendente a retomada nuclear em tempos de Lula 3. Desde a transição de governo, no fim do ano passado, a equipe do petista já sinalizava claramente que teria um apetite maior para o assunto do que o demonstrado pelo ex-presidente. Jair Bolsonaro chegou a ensaiar que seguiria por esse caminho, mas não conseguiu concretizar suas promessas. Além disso, foi justamente nas gestões de Dilma Rousseff e do próprio Lula no passado que alguns projetos nucleares foram lançados, sendo que vários deles ficaram marcados por denúncias de corrupção. Além de Angra 3, a lista inclui o submarino nuclear, outra iniciativa que sofreu com as denúncias da Eletronuclear. Presidente à época da estatal, o almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva foi preso no curso da Operação Radioatividade. No começo de 2022, a pena foi reduzida de 43 anos para quatro anos, dez meses e dez dias.
Apesar de ser uma das energias mais limpas disponíveis, o imaginário negativo associado a empreendimentos nucleares pode provocar resistências. O último incidente no país ocorreu em setembro passado, quando Angra 1 jogou material radioativo na baía de forma acidental — a empresa minimizou o episódio, mas o caso está sob investigação. Apesar de especialistas argumentarem que os riscos são muito pequenos, quando comparados aos de outras indústrias energéticas, é quase certo que o plano atômico provocará discussões explosivas na Esplanada de Ministérios. Atual titular da pasta do Meio Ambiente, Marina Silva já se manifestou contrária a iniciativas do tipo no primeiro governo Lula. Hoje, a energia nuclear é responsável por apenas 2% da produção nacional (60% vêm de hidrelétricas). A ver se, com o novo impulso, virão mais investimentos e maior relevância para o setor — ou será suficiente apenas para acender a luz de novas polêmicas.
Publicado em VEJA de 14 de Junho de 2023, edição nº 2845