“Que Deus abençoe este submarino e todos os marinheiros que aqui navegarem!” Com essas palavras, no dia 27 de março, a primeira-dama Janja da Silva estourou uma garrafa de champanhe e consagrou-se madrinha da nova embarcação, sob aplausos de uma animada plateia que incluía os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e da França, Emmanuel Macron, além do ministro da Defesa, José Múcio, e do comandante da Marinha, almirante Marcos Sampaio Olsen. A pomposa cerimônia ocorreu nas águas de Itaguaí, no Rio, sede do Programa de Desenvolvimento de Submarinos (ProSub), projeto naval criado pelo próprio Lula em 2008 para construir, além de quatro modelos convencionais, um pioneiro submergível de propulsão nuclear de tecnologia francesa. Quinze anos depois, o estaleiro foi um dos primeiros destinos do petista após a sua volta ao poder, o que renovou as expectativas por vastos investimentos. Em vez disso, a Marinha enfrenta agora o desafio de evitar um naufrágio financeiro.
Dias depois da festa com Janja, Lula e Macron, o governo torpedeou o ProSub, colocando-o na mira do plano de ajuste fiscal. Resultado: bloqueou 200 milhões de reais da verba para 2024, deixando os esperançosos marinheiros a ver navios. O negócio azedou de vez com a demissão de 200 trabalhadores pela Itaguaí Construções Navais (ICN), sociedade constituída em 2009 entre a francesa Naval Group e a brasileira Odebrecht para tocar o programa. A companhia ainda sinalizou a possibilidade de mandar para a rua outros 400 funcionários.
Do lado da ICN, a justificativa é o custo elevado para manter a mão de obra, que é extremamente especializada e exige investimentos constantes na formação dos engenheiros e técnicos, frequentemente enviados à França para receber treinamento . “A qualificação desses trabalhadores é longa e custosa, não se forma um engenheiro de submarinos em dois ou três meses”, explica Francisco Figueirol Lobo, gerente de administração e recursos humanos da ICN. A lacuna no quadro profissional é a maior agonia da Marinha. “Estamos perdendo especialistas que capacitamos para o mercado, o que gera mais atrasos e, com isso, mais custos. É uma bola de neve”, diz o contra-almirante Luiz Valicente, assessor-chefe do ProSub.
Desde a sua criação, o ProSub entregou às Forças Armadas três dos cinco submarinos previstos, mas ainda faltam dois, inclusive a joia da coroa. O submarino nuclear Almirante Álvaro Alberto teve suas primeiras chapas confeccionadas em outubro e, desde o bloqueio de verbas, não tem previsão realista para ficar pronto. No início do ano, a Defesa estimava um déficit de 780 milhões de reais nos recursos para o ProSub em 2024 — depois do torpedo orçamentário, o rombo subiu para quase 1 bilhão de reais. O impacto da decisão no cronograma de entregas ainda está em análise, mas os militares mais otimistas calculam que, se não houver novos cortes, a embarcação pioneira será lançada ao mar, no mínimo, em 2034 — quatro anos após a previsão inicial.
Em volume cada vez maior nos bastidores, os militares reclamam da política de cinto apertado. A pasta da Defesa lamenta que o total de recursos para 2024 seja o menor dos últimos dez anos, perdendo 2 bilhões de reais dos 12 bilhões de reais previstos. Em abril, perante uma comissão da Câmara, o ministro José Múcio tornou pública a insatisfação, lamentando a destinação de 1,1% do PIB para a Defesa, muito aquém da média global de 2,3%. “Estamos quase ficando com marinheiros sem navios, aviadores sem aviões e soldados sem equipamentos”, alertou, ao lado da cúpula das Forças Armadas.
A frustração da Marinha é maior neste momento, pois seu almirantado considera o submarino pioneiro um dos mais promissores caminhos para desenvolver todo o setor nuclear do Brasil, já que envolve transferência de tecnologia pela França. Por trás do sistema de propulsão está a mesma matriz que pode ser aplicada à geração de energia limpa, parte estratégica de uma política de transição energética. Outro campo que pode se beneficiar das pesquisas é o da produção de radioisótopos, com aplicações que vão desde o diagnóstico de fraturas ósseas até a detecção e tratamento de câncer. “É preciso entender que a pesquisa nuclear é um programa de Estado, não de governo, que contribui para a independência do país em setores estratégicos”, avalia Valicente.
A restrição das verbas de Defesa soou como um tiro no pé dado pelo governo, que tenta construir relação melhor com o setor. Mais ultrajante para a Marinha foi a rasteira ter vindo dias após servir de instrumento de um convescote diplomático destinado a passar uma imagem distorcida da política brasileira para o setor. O mar, para Lula, voltou a ficar agitado.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2024, edição nº 2892