Termômetros em disparada no verão do Hemisfério Norte vêm sendo uma constante nestes tempos de planeta aquecido, mas nunca se viu um conjunto tão impressionante de eventos simultâneos decorrentes das elevadíssimas temperaturas como nos últimos dias, sobretudo na Europa. No Reino Unido, deu-se o quase insuportável recorde histórico de 40,3 graus na terça-feira 19 — motivo para um alerta vermelho de “calor excepcional”, anunciado pelas autoridades sanitárias —, e a população abarrotou as praias como nunca antes, voos foram suspensos já que as pistas do aeroporto fritavam e até os rigidamente estáticos soldados postados à porta do Palácio de Buckingham tiveram de se mexer para beber água no meio do expediente e do público.
Na Itália, onde havia 200 dias que não caía uma gota de chuva, a seca — que, aliás, ameaça a metade do continente — já fazia faltar uma tríade essencial à mesa: arroz para risoto, azeitona e vinho. O tormento francês, que passa pela escassez de mostarda, item de sobrevivência nacional, foi tanto que as pessoas se lançaram às fontes em estilo art nouveau no meio da rua e milhares precisaram evacuar de uma região ao sul do país que ardia em chamas. Também em Portugal e na Espanha, com registro de 1 700 mortes, as intensas labaredas dos incêndios florestais eram triste sinal da severa mudança climática em marcha.
Para moradores de cidades como Rio de Janeiro, por exemplo, habituados à inclemência dos 40 graus, tamanho estrago provocado por temperaturas semelhantes pode causar espanto. Mas muitos fatores explicam por que para os europeus é mais penoso. Em vários países da UE, os edifícios são projetados para reter calor, justamente pensando na temporada do inverno, essa, sim, uma preocupação desde sempre. “Cria-se uma espécie de efeito estufa nas casas”, diz o climatologista Viktor Roezer, da London School of Economics. A infraestrutura é toda concebida para um clima mais ameno — tanto assim que os trilhos de trem britânicos correm risco de se deformar acima dos 35 graus. Curiosamente, até o aspecto fisiológico ajuda a entender o profundo impacto do calor europeu sobre a população. “Como é raríssimo, o corpo demora mais a se adaptar, podendo levar a efeitos fatais, caso não se tomem os devidos cuidados”, alerta Roezer.
Não é apenas a Europa que ferve. Nos Estados Unidos, 70 milhões de pessoas (21% da população) vivem em áreas sobre as quais pairam previsões perigosas de calor para o atual verão. Mas os europeus sofrem mais agora por causa de um fenômeno que tem os pés fincados no aquecimento global — o qual já fez os termômetros escalarem 1,1 grau na comparação com o período pré-industrial.
O que ocorre neste momento é que o aumento de temperatura está embaralhando ainda mais os patamares climáticos conhecidos ao alterar o sistema de pressão atmosférica, uma dinâmica que costumava seguir um roteiro previsível. Com a baixa pressão atmosférica, abre-se caminho para os ventos despejarem o ar quente do Deserto do Saara na Península Ibérica, que de lá se espalha pelo continente. Não é um episódio, infelizmente, isolado. Segundo estudo publicado no periódico Nature Communications, as ondas de calor na Europa têm aumentado em frequência e vigor nas últimas quatro décadas. “É inegável que ondas de calor se tornaram significativamente mais prováveis devido às mudanças climáticas”, afirma Swenja Surminski, diretora de clima e sustentabilidade do gigante de seguros Marsh McLennan.
Para reverter a subida dos termômetros, cujas nefastas consequências agora batem à porta das pessoas, a recomendação do IPCC, o painel global das mudanças climáticas da ONU, é reduzir as emissões dos gases do efeito estufa ao ritmo de 7% por ano. Isso exige, porém, uma reviravolta no modo de viver e produzir que ainda soa distante. O resultado é que, no lugar de retroceder, as emissões avançam 2% anualmente, o que agrava a ira de ativistas como os do Just Stop Oil (veja abaixo). A guinada é trabalho para começar já e colher os frutos lá na frente. “Com uma ação imediata, as temperaturas globais podem voltar a cair até os anos 2100”, calcula Roezer, da London School of Economics. Por ora, a Organização Meteorológica Mundial prevê dias ainda bastante abafados e não descarta novos recordes que ninguém quer bater.
Colados à causa
Na Royal Academy, em Londres, uma comoção abalou o clima sereno dos salões abarrotados de preciosas obras quando um grupo de ativistas ambientais entrou, pintou as paredes com tinta spray e colou as próprias mãos na moldura da réplica de A Última Ceia, de Leonardo Da Vinci, atribuída a seu discípulo Giampietrino. Em uma semana de julho, a cena se repetiria outras quatro vezes em galerias do Reino Unido, incluindo uma turma que se grudou à moldura do belo Pessegueiros em Flor, de Van Gogh, na Courtauld Gallery. Antes, um pessoal havia invadido a cerimônia de entrega do Bafta, o Oscar britânico, e se amarrado às traves do gol em partidas da pré-temporada da Premier League. Nada contra o esporte ou as artes. A intenção do movimento Just Stop Oil, lançado em fevereiro e já com atuação em dez países, é fazer de tudo para chamar a atenção para sua grande e única causa: a imediata proibição de emissão de novas licenças para a exploração e produção de combustíveis fósseis.
O grupo segue a linha da desobediência civil do pioneiro Greenpeace e do Fridays for Future, da sueca Greta Thunberg, mas radicaliza ainda mais no tom num contexto em que a guerra da Ucrânia freou a tão propalada transição energética, cujas metas foram arrancadas a duras penas dos países desenvolvidos. Por suas ações, movimentos dessa natureza acabam atraindo mais críticas do que simpatias, e seus integrantes são frequentemente taxados de ingênuos, simplistas e prepotentes. “Não queremos atrapalhar ninguém, mas achamos que a sociedade não pode continuar a viver normalmente com uma crise climática de tal magnitude”, justifica Eben Lazarus, músico de 22 anos que se colou à pintura de John Constable na National Gallery. O objetivo dos ativistas do século XXI é reverter a preocupante curva do aquecimento global, com ações cada vez mais barulhentas e escandalosas. Vão conseguir? Quem viver verá — literalmente.
Publicado em VEJA de 27 de julho de 2022, edição nº 2799