Por volta de 320 a.C., o geógrafo grego Píteas foi teoricamente o primeiro homem a chegar ao Ártico. Embora se trate de um registro distante e incerto, ele representa o caráter da relação que os humanos estabeleceram com o círculo polar — Píteas, afinal, estava em busca de minas de estanho. Durante o século XX, a corrida de ouro voltou os olhos do mundo para a região e, mais tarde, a descoberta de enormes reservas de minerais, petróleo e gás natural promoveu a invasão de terras que, até aquele momento, eram habitadas apenas por populações indígenas. Desde então, Canadá, Estados Unidos e Rússia exploram ostensivamente o local. O solo gelado garantiu uma fonte abundante de energia, mas trouxe um problema de iguais proporções. Descartar corretamente o lixo industrial exigiria grandes viagens e uma quantidade generosa de dinheiro. Numa região pouco populosa e sem fiscalização, a solução pareceu óbvia: simplesmente enterrar os rejeitos, que ficariam congelados para sempre. Com o ritmo acelerado do aquecimento global, a facilidade se transformou em uma bomba que está prestes a explodir. E que ninguém até agora sabe como desativar.
Um grupo de cientistas do instituto alemão Alfred Wegener passou os últimos anos investigando o tamanho da enrascada. O que descobriram foi estarrecedor: entre 13 000 e 20 000 polos de contaminação estão espalhados pelo Ártico e pelo menos 3 500 deles permanecem soterrados em regiões do permafrost — um tipo de solo local — que se tornarão progressivamente mais instáveis com o passar dos anos. Isso ocorre porque, se nos continentes mais populosos a emergência climática acende um sinal de alerta, no Ártico o perigo é ainda maior. À medida que o gelo derrete, quantidades imensuráveis de gás carbônico são liberadas na atmosfera, enquanto a energia solar, antes refletida pelo branco intenso, aquece as águas escuras do oceano. O fenômeno físico gera um ciclo que faz com que a temperatura na região aumente num ritmo quatro vezes maior que no restante do mundo. Como resultado, o permafrost, antes intransponível, se torna mais permeável, e o lixo escondido nele, cada vez menos protegido.
Os combustíveis representam quase a metade dos resíduos escondidos, mas estão longe de ser o maior problema. A outra porção é distribuída em componentes que ninguém gostaria de encontrar no quintal de casa, como arsênico, mercúrio e rejeitos radioativos. O maior perigo, contudo, é o que há de desconhecido. Pelo menos 10% de todos os resíduos são classificados como incertos e podem carregar, literalmente, qualquer coisa. “Se você não sabe o que é, pode ser algo inócuo ou um supertóxico”, afirmou a VEJA Moritz Langer, professor associado da Universidade Livre de Amsterdã e membro do instituto alemão que fez o levantamento.
Os danos ambientais seriam, de fato, incalculáveis. Segundo especialistas, derivados de petróleo se infiltrariam de maneira permanente no ecossistema, metais pesados contaminariam peixes e o lixo radioativo seria transportado para bem longe pelos rios e oceanos. Os problemas não param por aí. Apesar dos números assustadores de polos contaminados, eles podem estar consideravelmente subestimados, porque os registros não são atualizados pelos governos e a fiscalização é quase inexistente. Além disso, até agora ninguém se mobilizou para remover o lixo tóxico do Ártico, um trabalho que se tornará mais difícil à medida que o solo gelado fica mais frágil e menos capaz de suportar grandes maquinários. “O problema do derretimento do permafrost é subestimado”, afirmou Luigi Jovane, doutor em geofísica e geologia e professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo. A questão não é se, mas quando a bomba explodirá. Se isso ocorrer, o planeta inteiro ficará seriamente ameaçado.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2023, edição nº 2841