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O modelo duvidoso por trás da suspensão de passagens da agência 123milhas

Empresa gera temor de que seu desenho de negócios possa se assemelhar ao de pirâmides financeiras

Por Felipe Mendes, Larissa Quintino Atualizado em 4 jun 2024, 10h13 - Publicado em 25 ago 2023, 06h00

Os programas de milhagens, criados pela companhia aérea americana American Airlines em 1981, provocaram verdadeira revolução no setor. Ao viajar, os passageiros acumulam milhas que, a partir de determinada quantidade, podem ser trocadas por descontos ou pela aquisição integral de novos bilhetes. O modelo espalhou-se pelo mundo e faz enorme sucesso também no Brasil. Além de permitir que as pessoas voassem mais, assegurou fontes adicionais de receitas para as empresas. Pouco depois, o sistema aprimorou-se a tal ponto que passou a ser possível obter milhas convertendo compras de qualquer produto feitas com cartões de crédito. Há uma década, contudo, surgiu uma espécie de mercado paralelo que começou a seduzir viajantes com uma proposta irresistível. Agências começaram a comprar milhas diretamente dos clientes para as revender depois por preços muito baixos. Se o turista fechar negócio com grande antecedência, é possível encontrar passagens de ida e volta para a Europa por volta de 1 000 reais. Para os Estados Unidos, existem opções ainda mais em conta, por 800 reais. O problema é que, na lógica econômica, milagres como esses quase sempre não se sustentam por muito tempo.

arte 123 milhas

Na sexta-feira 18, a agência de turismo on-line 123milhas, líder entre as empresas que adotaram esse modelo de negócios, suspendeu a emissão de bilhetes de um de seus produtos, conhecido como “passagens promo”. O motivo alegado foi a alta demanda de consumidores que tinham comprado suas passagens havia um bom tempo e gostariam de resgatá-las agora. Procurada pela reportagem, a empresa atribuiu a medida a “razões mercadológicas”. Ela também defendeu-se ao dizer que ofereceu o reembolso em vouchers de outros produtos — como passagens com data marcada — disponíveis em seu site. Como não poderia deixar de ser, a medida revoltou consumidores, que viram o sonho de viajar cair por terra pela decisão unilateral da companhia. Não há número oficial, mas é certo que milhares de pessoas foram atingidas.

Afinal, o que significam as tais “razões mercadológicas” mencionadas pela 123milhas? Muitos analistas dizem que o problema está justamente em seu modelo de negócio, que se assemelha às malfadadas pirâmides financeiras. Nos pacotes flexíveis, é a agência que determina o dia do embarque em função de uma janela de opções dada pelo cliente. O problema é quando muitos deles escolhem a mesma janela, obrigando a empresa a vasculhar o mercado em busca de voos disponíveis. Se a demanda for muito alta, como ocorreu nas últimas semanas, há o risco de a agência não conseguir atender aos pedidos. Foi isso o que fez a 123milhas suspender parte das operações. “A forma de negociação dessas empresas de milhagens nunca ficou muito clara”, diz o advogado José A. Lion, especializado em direito do consumidor. “O governo precisa criar regras mais rígidas para evitar novos casos desse tipo.”

MAU EXEMPLO - Mendes, do Hurb: chegou a renunciar após xingar clientes
MAU EXEMPLO - Mendes, do Hurb: chegou a renunciar após xingar clientes (Ricardo Azoury//)
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A compra e venda de milhas não é ilegal, mas sua prática não é regulada no Brasil. O limbo judicial tem feito com que as companhias aéreas e seus braços de fidelidade recorram a tribunais contra as empresas milheiras. De dezesseis casos desse tipo julgados em 2022 pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, quinze tiveram decisões favoráveis às companhias aéreas. Na terça-feira 22, o ministro do Turismo, Celso Sabino, disse não ver risco de crise sistêmica no setor e garantiu que o governo estuda medidas para dar segurança ao negócio.

Não é de hoje que esse modelo de pacotes de viagem sem data marcada traz problemas aos consumidores. Em maio, o Hurb, antigo Hotel Urbano, foi proibida pela Secretaria Nacional do Consumidor de vender os tais pacotes flexíveis, embora continue oferecendo essa possibilidade em seu site de vendas. Pouco antes, o presidente João Ricardo Mendes renunciou ao cargo após ser flagrado xingando clientes em uma gravação telefônica e vazar dados de alguns deles — posteriormente, voltou à posição após seu sucessor pedir demissão. Casos como esses deixam uma lição: nenhuma empresa, de qualquer setor, pode exercer sua atividade sem se sujeitar a normas claras de conduta. Na ausência de um poder fiscalizador, cabe ao consumidor desconfiar dos milagres para não acabar ficando com o prejuízo.

Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2023, edição nº 2856

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