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Livro revela impacto das pinturas dos anos 1500 na história da beleza

Não vem de hoje o interesse, o fascínio — e, vá lá, a obrigação — de cobrir o rosto com cosméticos para alcançar um determinado padrão estético

Por Simone Blanes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h11 - Publicado em 27 ago 2023, 08h00

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres da Renascença para entenderem o ponto a que chegamos hoje. Ou posto de outro modo, com a precisão de um delineador bem tracejado entre os cílios e a pálpebra: não vem de hoje o interesse, o fascínio — e, vá lá, a obrigação — de cobrir o rosto com cosméticos para alcançar um determinado padrão de beleza. A avalanche de selfies nas redes sociais, que pressupõe o rosto cuidado, é uma das facetas de nossa civilização, embebida da tecnologia que criou os smartphones. Mas, surpresa, era assim há mais de 500 anos. Com as primeiras pinturas naturalistas e o uso revolucionário da perspectiva, o expediente geométrico que produzia a sensação de realidade, as moças, sobretudo elas, foram impelidas a tingir o rosto, colorir os lábios e arrumar os cabelos para aparecerem bem na foto — ops, nas telas a óleo de Ticiano, Rafael, Bruneleschi e cia. Os quadros eram espelhos, como espelhos são as telas dos celulares. Eis a tese de um fascinante livro recém-­lançado, How to Be a Renaissance Woman: The Untold History of Beauty & Female Creativity, de Jill Burke, ainda sem tradução para o português. “O que fazemos com o cabelo, o rosto e corpo reflete e afeta nosso mundo social”, diz Jill. Era assim e ainda é.

Naquele tempo — e um tanto ainda agora, ressalve-se, guardadas todas as exageradas e devidas proporções —, os homens iam para os campos de batalha e eram ricos. As mulheres se pintavam para atrair homens com dinheiro e como recurso de vingança, belas a ponto de levá-los para a cama e matá-los. O uso de cosméticos, portanto, menos do que símbolo de submissão a determinados padrões impostos pelo universo masculino, era também um manifesto, como um feminismo avant la lettre. Significava empoderamento. Em suas pesquisas, Jill Burke encontrou manuais de casamento que recomendavam bater na esposa e, como contrapartida, receitas e fórmulas vendidas em boticários ensinando a esconder o chamado “sangue morto” de golpes no rosto usando folhas de hortelã selvagem.

CORAGEM - Cabelos pintados e longos, em obra de 1495: químicos perigosos
CORAGEM - Cabelos pintados e longos, em obra de 1495: químicos perigosos (Heritage Images/Getty Images)

Para além dos retoques que encobriam a violência, elas travavam uma guerra particular, doméstica. Sobreviviam e construíam pontes para o futuro — intuíam que as pinturas as marcariam para a posteridade, o que de fato aconteceu, como se vê em belos museus mundo afora. “Muitas delas, pintadas, posando para os artistas, queriam eternizar a beleza como as deusas gregas, por isso o rosto branco como o mármore”, diz Brunno Almeida Maia, pesquisador de filosofia e teoria de moda pela Universidade Federal de São Paulo. É postura, tendo brotado no período de luzes, depois das trevas da Idade Média, que atravessou os séculos, e que pode ser medida em cifras. Em 2022, a indústria de cosméticos movimentou mais de 430 bilhões de dólares globais — e relatórios recentes indicam que nem tão cedo, ou nunca, deixará de se expandir, e com velocidade.

Aplausos, portanto, para as pioneiras do passado que sabiam estar se envenenando, mas seguiam em frente. Os produtos para deixar a pele pálida como a máscara branca da rainha Elizabeth I (1533-1603), para tingir os lábios de tonalidades rubras ou os cabelos de vermelho-fogo eram tóxicos a não mais poder. Muitas apelavam para Caterina Sforza (1463-1509), dama da sociedade de Milão que circulava entre os Médici de Florença e que se especializou em alquimia, química e botânica e de cujo laboratório saíam substâncias mágicas contra rugas e outras marcas faciais. Não seria exagero dizer que se apelava, nos anos 1500, ao que havia de mais “moderno” e, em muitos casos, também a truques que corriam de boca em boca, de modo a sobreviver com altivez — atalho para demarcar espaço em tempo de tanta sordidez e mentiras.

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ALQUIMIA - Um boticário florentino: frequentado por damas da sociedade
ALQUIMIA - Um boticário florentino: frequentado por damas da sociedade (Aron Harasztos/MFAB/.)

Não como hoje, é verdade, no império das redes sociais, mas não seria tão absurdo dizer que os retratos que anteciparam a invenção da fotografia, séculos depois, serviam de ferramenta feminina (os homens eram sempre mostrados de corpo inteiro, guerreiros). Napoleão Bonaparte (1769-1821), atento ao caminhar da história que veio antes dele, mulherengo compulsivo, disse certa vez, em frase que se perpetuou com tudo o que tem de arrogante e misógina, mas com a acuidade de um observador profissional: “As mulheres têm duas armas terríveis: cosméticos e lágrimas”.

O livro de Jill Burke, resultado de extraordinário trabalho de investigação, revela o andar de uma carruagem que nunca parou. O machismo, comportamento afeito a estabelecer as regras do jogo a partir de um único ponto de vista, morde a si mesmo — e o que sempre pareceu apenas o respeito a uma ordem (as mulheres precisam estar bonitas) logo se transformou em postura de elegante e belo contra-ataque, com estilo.

Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2023, edição nº 2856

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