Isabelle Huppert a VEJA: ‘Não me vejo como ícone, nem como feminista”
Em 'A Sindicalista', ela volta a um tipo de papel que virou sua marca registrada
Os atributos de Isabelle Huppert impressionam. Estrela do cinema francês que combina talento, elegância e beleza, a parisiense é reverenciada também em Hollywood e respeitada por diretores com fama de difíceis: ela conquistou do mestre da nouvelle vague Jean-Luc Godard ao austríaco Michael Haneke. A atriz, porém, carrega consigo uma pecha mais mundana. Ainda que não goste da alcunha, Huppert é uma workaholic. A prova é seu currículo: são 140 filmes lançados em cinco décadas de carreira, fora participações em séries de TV e peças de teatro nos principais palcos do mundo, da França e Inglaterra até os Estados Unidos. A agenda lotada a levou a atender a reportagem de VEJA via telefone às 22 horas em Seul, capital da Coreia do Sul, onde ela atualmente roda um filme com o cineasta cult Hong Sang-soo. “Que horas são no Brasil agora?”, ela questionou, curiosa. Eram 10 horas da manhã por aqui. “Temos doze horas de distância entre nós”, comentou a atriz, sem demonstrar a menor ponta de cansaço após mais um dia de trabalho duro no set de gravação.
Entre seus trabalhos recentes está o filme A Sindicalista (La Syndicaliste, França/Alemanha, 2022), já em cartaz no Brasil. A produção dirigida por Jean-Paul Salomé é um dos cinco longas lançados por ela no ano passado — e de longe o mais impactante. Ambientado entre 2012 e 2018, ele acompanha a história real de Maureen Kearney, presidente do sindicato da Areva, então gigante francês da indústria nuclear. Maureen descobriu planos de fusão e troca de segredos tecnológicos da empresa com a China, relação que colocou na mira o emprego de 50 000 funcionários — mas garantiria bilhões de euros aos que estavam no topo da corporação. Ao peitar poderosos, ela foi atacada e torturada dentro de casa. A violência expôs uma rede de corrupção, da polícia ao Judiciário — e Maureen foi encurralada por narrativas machistas, que puseram sua sanidade em xeque.
Diante dos principais trabalhos da atriz, não é difícil entender seu interesse por A Sindicalista. “Gosto de pessoas complexas, intensas, que nos deixam em dúvida sobre seus atos”, diz (leia mais). Um dos melhores exemplos é Michèle, protagonista do excelente e provocativo filme Elle, de Paul Verhoeven, com o qual Isabelle concorreu ao Oscar em 2017 — mas perdeu, injustamente, para Emma Stone por La La Land. No longa, Michèle é estuprada e passa a perseguir (e até seduzir) seu abusador. Assim como Maureen, ela enfrenta o trauma de modo pouco convencional: ambas se reconhecem como vítimas e querem justiça, mas não se rendem à paralisia do vitimismo. “Isabelle é uma atriz única, inteligente e intuitiva. Ela toma a cena e o diretor só tem o trabalho de acompanhá-la”, disse Verhoeven na época.
Isabelle Huppert: Stardom, Performance, Authorship
Filha de uma professora de inglês e de um engenheiro, Isabelle começou a atuar na adolescência, passou pela TV e logo em seu primeiro filme, Desejo de Amar (1972), causou espanto direto no badalado Festival de Cannes. Sensual e enigmática, reforçou uma geração de ouro de atrizes francesas incontornáveis da história do cinema, como Catherine Deneuve e Isabelle Adjani — grupo de beldades que seguiu na esteira da musa Brigitte Bardot, que as antecedeu e ajudou a abrir portas para as conterrâneas em Hollywood. Isabelle Huppert, porém, demonstrou habilidades que a elevaram a uma espécie de Olimpo da atuação — uma lista recente do americano The New York Times a elegeu como a melhor atriz do século XXI (até o momento). Sem sentimentalismos maniqueístas e de olhar penetrante, ela é capaz de provocar sensações inesperadas no espectador, hipnotizado por sua persona — mesmo diante de cenas difíceis de se assistir. Sua força é inesgotável — e seu talento, idem.
“Gosto de me impor”
A atriz Isabelle Huppert falou a VEJA sobre a carreira e sua predileção por personagens complexas
O que a atraiu em A Sindicalista? Gosto que seja um thriller, mas também é sobre a história real e chocante dessa mulher que tem uma coisa hitchcockiana, é loira, bela e dura. Ela sofreu uma violência e foi desacreditada por homens por seu jeito de ser.
Suas personagens costumam ser ambíguas e fortes. Por que esse tipo a interessa? O cinema permite mostrar as nuances da vida humana. Gosto de pessoas complexas, intensas, que nos deixam em dúvida sobre seus atos.
Considera-se um ícone feminista? Não me vejo como ícone, nem como feminista. Meu jeito de ser feminista é ser o centro de mim, e não a seguidora de um homem. Gosto de me impor, de fazer minhas escolhas e de ser responsável por elas. Tento buscar meu lugar e minhas convicções em tudo o que eu faço.
Sua rotina insana já é conhecida no meio. O que a motiva a trabalhar tanto? Ouvi recentemente uma fala do diretor Jean Renoir (1894-1979) na qual ele respondia a essa pergunta dizendo que sua motivação era o presente. Que não era o resultado final, mas, sim, o momento e a alegria que o hoje traz. Eu concordo. Faço o que eu faço porque amo o momento em que estou trabalhando.
Entre tantos filmes, carrega algum arrependimento? Já me arrependi de não ter aceitado projetos, mas nunca do que eu já fiz. Não sou do tipo que olha para trás.
A senhora é aclamada em diversos países. Como analisa o termo “sucesso”? Aprendi que é impossível ter sucesso sempre e em todas as áreas. O importante é continuar em movimento.
Publicado em VEJA de 5 de Julho de 2023, edição nº 2848
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