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Crise dos opioides nos EUA deixa lições e sinais de alerta para o Brasil

Embora a situação nacional seja diferente da americana, começa a soar o alarme por esclarecimentos e medidas preventivas

Por Diogo Sponchiato
Atualizado em 4 jun 2024, 10h31 - Publicado em 25 Maio 2023, 19h30

“Em uma palavra, a pessoa deixa de existir. Está desconectada. É um cadáver que se move, se deprime e sofre. Não deseja nada nem pensa em nada que não seja morfina.” Eis o retrato da dependência pelo mais famoso princípio ativo do ópio na pena do escritor e médico russo Mikhail Bulgákov (1891-1940). Em um conto de 1917, ele já alertava para o outro lado de um medicamento que revolucionou o tratamento da dor: quando mal administrado, pode viciar. Então imaginemos o que pode acontecer diante de uma molécula 100 vezes mais potente que a morfina. É o fentanil, um analgésico e anestésico que, fora dos domínios médicos, encabeça uma crise de saúde pública nos Estados Unidos e preocupa especialistas em outros países, incluindo o Brasil.

BOLA DA VEZ - Fentanil: anestésico controlado virou droga de abuso
BOLA DA VEZ - Fentanil: anestésico controlado virou droga de abuso (iStock/Getty Images)

O alarme ecoou no país depois de a Polícia Federal apreender lotes irregulares de fentanil nos estados de São Paulo e Espírito Santo em fevereiro. Em abril, duas novas levas foram descobertas no Amazonas. Essas movimentações vêm ao encontro de uma análise de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sobre o crescimento na demanda por opioides sintéticos (dentro e fora das farmácias) e a necessidade de estabelecer maior vigilância e controle sobre drogas que hoje são manufaturadas por laboratórios clandestinos e vendidas pelo narcotráfico. Embora a situação nacional seja bem diferente da tragédia nos EUA — só em 2021 mais de 100 000 americanos morreram por overdose de fentanil e congêneres, um aumento de 279% em relação a 2016 —, há um sinal de fumaça que cobra esclarecimentos e medidas preventivas. No Brasil, faltam números precisos sobre a dimensão do problema, mas estima-se que até 3% da população já tenha usado opiáceos sem prescrição — e é aí onde mora o perigo.

A ameaça atual não nasceu ontem: é filha de uma história cujo marco inicial é o ano de 1996, quando a companhia americana Purdue Pharma lançou uma nova formulação de um opioide sintético. “As raízes de toda essa crise remotam ao OxyContin”, diz a VEJA o jornalista investigativo Patrick Radden Keefe, autor de Império da Dor (Intrínseca), livro que vasculha minuciosamente as origens da crise de opioides nos EUA (leia outros trechos da conversa abaixo). OxyContin é o nome comercial da oxicodona de liberação contínua, um comprimido mais forte que a morfina anunciado ao mercado à época como uma solução mais segura e inovadora para indivíduos que precisavam se tratar de dores crônicas. Cientes do risco de dependência dessa classe farmacológica, os donos da Purdue apresentaram o que seria a invenção ideal: um remédio que não “viciaria”. Mas não só esconderam dados de que isso não era verdade como, por meio de propaganda agressiva e cooptação de médicos e da agência regulatória americana, promoveram intensamente o fármaco, sobretudo em cidades do interior americano, onde abundavam trabalhadores braçais e atletas universitários ávidos por silenciar suas dores.

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TRÁFICO - Apreensão de fentanil irregular: São Paulo, Espírito Santo e Amazonas registraram ações da Polícia Federal
TRÁFICO - Apreensão de fentanil irregular: São Paulo, Espírito Santo e Amazonas registraram ações da Polícia Federal (PCES/Divulgação)

Em meio a essa “mistura de medicina e comércio”, nas palavras de Keefe, o produto se tornou um sucesso estrondoso no mercado. Até 2016, o OxyContin havia gerado 35 bilhões de dólares em vendas de receita — nesse meio tempo, entre 2006 e 2015, o fabricante investiu 700 milhões de dólares em lobby. O fenômeno comercial abriu, no entanto, uma caixa de Pandora. Depois de sua introdução, quase meio milhão de americanos morreram de overdose de opioides, algo em torno de 115 perdas por dia ligadas a substâncias controladas, como a oxicodona, e ilícitas, caso da heroína. O que poderia ter sido um medicamento que, com indicação adequada e uso controlado, tiraria o sofrimento de pacientes com dores devido a um câncer tornou-se o motor de uma epidemia de dependência, gerando uma crise sanitária e social que chegou a custar ao governo estadunidense 80 bilhões de dólares por ano.

O episódio demarcou um capítulo inusual na história das drogas. Porque, pelo menos em seus primeiros anos, o fenômeno do OxyContin não remetia mais a cenas de usuários perdidos nas ruas sendo assediados por traficantes. A dependência começava no consultório médico, após uma prescrição de um doutor que frequentemente não tinha consciência do potencial viciante da medicação. “Esse cenário também foi favorecido pelo fato de os americanos terem uma cultura e um sistema de saúde que priorizam medicamentos em detrimento de outras estratégias, como a fisioterapia”, avalia a psicóloga Ilana Pinsky, pesquisadora ligada à Fiocruz que hoje vive em Nova York.

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PROTESTO - Pelas vítimas: familiares pedem condenação de grupo por trás do OxyContin
PROTESTO - Pelas vítimas: familiares pedem condenação de grupo por trás do OxyContin (Carolyn Kaster/AP/Image Plus)

Quando o Estado acordou para o problema, os estragos fugiam do controle. E, ao cercar a Purdue e sua detentora, a família Sackler, assim como a comercialização irrestrita do remédio, milhares de pessoas dependentes dele ficaram, de uma hora para outra, com acesso limitado. A alternativa foi sair às ruas em busca de outro opioide, desta vez um ilícito, a heroína. Nascia, assim, a segunda onda da crise, que seria seguida de uma terceira, a do fentanil, analgésico ainda mais forte e perigoso se utilizado sem acompanhamento especializado, mas agora oriundo de insumos chineses e desembarcando nos EUA pelo México. “Hoje se fala até numa quarta onda, com os análogos de fentanil, que são ainda mais potentes e incluem substâncias de uso veterinário até para elefantes”, diz a médica Mariana Neves, presidente da Sociedade Mineira para o Estudo da Dor. “O preocupante é que o antídoto administrado para reverter problemas causados por intoxicação de opioides, como a depressão respiratória, não funciona tão bem com essas versões mais fortes.”

PANACEIA - Propaganda: no início do século XX, a morfina era promovida e vendida sem restrições
PANACEIA - Propaganda: no início do século XX, a morfina era promovida e vendida sem restrições (Pierce Archive LLC/Buyenlarge/Getty Images)

A situação ganha contornos sombrios quando se tem em vista que, atualmente, inclusive no Brasil, outras drogas, como cocaína e canabinoides sintéticos, têm sido batizadas com fentanil. “Há um grupo de pessoas que as adquirem sem saber e nem imaginam que estão usando opioide, o que dificulta até na hora de socorrê-las”, relata o médico João Mauricio Castaldelli-Maia, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP. Com o fentanil vendido às escuras, a procura e o consumo dos opioides de abuso retornaram às ruas e às mãos do narcotráfico. E é nessa direção o alerta da Fiocruz. “É crucial que tenhamos um sistema de vigilância toxicológica melhor, inclusive com o fornecimento de exames para essa finalidade a hospitais. Do contrário, podemos seguir no escuro e reagir de forma tardia”, diz Castaldelli-Maia.

GUERRA DO ÓPIO - Entre o vício e o lucro: conflito opôs chineses e britânicos
GUERRA DO ÓPIO - Entre o vício e o lucro: conflito opôs chineses e britânicos (David Henley/Universal Images Group/Getty Images)

Outro efeito colateral da epidemia dos opioides é que a desinformação e o preconceito acabam punindo quem realmente precisa dos remédios controlados para analgesia. “A crise atual ainda é mal interpretada e, tanto nos EUA como no Brasil, existem pacientes com dor e critérios de indicação sem tratamento ou com subdoses desses medicamentos”, diz Neves, que coordenou duas mesas de discussão sobre a classe farmacológica no recém-ocorrido Congresso Brasileiro de Dor. É preciso, portanto, distinguir o uso médico supervisionado do uso recreativo e compulsivo, sob pena de pessoas com dores crônicas e excruciantes deixarem de receber o devido alívio a seu martírio.

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O ópio extraído da papoula e seus ativos como a morfina têm uma longa e conturbada trajetória ao lado da humanidade. Sua vocação para calar as dores se confundiu com uma via expressa para obter a sensação de paz e prazer, algo que até a biologia ajuda a entender. “Temos nossos opioides endógenos, substâncias produzidas pelo corpo que atuam no sistema de recompensa cerebral. Mas os opioides exógenos o ativam mais intensamente”, explica o psiquiatra da USP. O “terrível agente de inimagináveis prazeres e dores”, para empregar o epíteto de que o escritor Thomas de Quincey (1785-1859) se vale em Confissões de um Comedor de Ópio, mudou o destino de pessoas e nações. Guerras movidas literalmente em seu nome chegaram a opor China e Grã-­Bretanha no século XIX, na esteira de uma onda de vício entre chineses alimentada por interesses comerciais britânicos. Na era das drogas sintéticas, a batalha protagonizada por fentanil e afins é de outra natureza, mas não menos rodeada de sofrimento.

“A epidemia está fora do controle”

O jornalista Patrick Radden Keefe investigou a fundo a família e a empresa acusadas de iniciar a crise dos opioides nos Estados Unidos. O fruto desse trabalho extenso e detalhado está em Império da Dor, recém-lançado no Brasil. O autor falou com exclusividade a VEJA.

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(Foto: Intrínseca/Divulgação)

Desde a publicação do livro, a situação melhorou nos EUA? A epidemia dos opioides ainda está fora do controle, com mais de 100 000 pessoas morrendo de overdose no ano passado. Fico animado que agora há mais discussão sobre a responsabilização dos envolvidos e vários maus atores, incluindo a Purdue Pharma e a família Sackler, têm ajudado financeiramente a pagar pela crise que provocaram. Mas a situação é tão grave que por enquanto não desacelerou.

Quando a Purdue se viu cercada nos EUA, tentou exportar sua estratégia de vendas com o OxyContin a outros países. Funcionou? Quando as empresas do tabaco começaram a ver que a venda de cigarros caía nos EUA, uma vez que a população estava se conscientizando a respeito, mudaram o foco de seus esforços para os chamados mercados emergentes, países em que as pessoas não tinham tanta noção dos riscos. Os fabricantes de opioide seguiram a mesma estratégia. Quando a Purdue teve problemas nos EUA devido ao marketing agressivo, passou-se a olhar, por meio de um de seus braços, a Mundipharma, para nações como Brasil, México, Índia e China. Os resultados foram mistos. Conseguiram desenvolver um mercado em alguns países, mas nada comparado ao dos EUA.

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Como lidar com a atual crise do fentanil? A crise dos opioides tem três fases até agora. Começou com o OxyContin e outros analgésicos controlados. Depois mudou, com os usuários passando para a heroína. E depois mudou de novo, com a migração para o fentanil, que é ainda mais mortal. Hoje vivemos uma crise do fentanil, mas as raízes de tudo remontam ao OxyContin. No livro, descrevo um grande estudo que descobriu que as regiões onde não houve um marketing tão agressivo de farmacêuticas como a Purdue apresentam, três décadas depois, taxas de overdose por heroína e fentanil significativamente mais baixas. O debate político nos EUA hoje devota muita atenção a soluções para a questão da oferta dessas drogas, haja vista que o fentanil cruza a fronteira pelo México ou vem da China. Mas a verdade é que temos também um problema de demanda interna. Enquanto houver americanos buscando e comprando essas drogas, o mercado encontrará uma forma de supri-los.

Nota de direito de resposta para a Mundipharma

“A Mundipharma não é uma subsidiária da Purdue Pharma dos Estados Unidos. As duas são companhias separadas e independentes, cada qual com seu board e sua equipe administrativa e operacional”.

Publicado em VEJA de 31 de maio de 2023, edição nº 2843

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