Deixar um tablet ou smartphone nas mãos das crianças para distraí-las e ganhar alguns minutos de tempo livre já faz parte da rotina dos pais das gerações mais novas, principalmente dos que tiveram filhos depois de 2007, o marcante ano de lançamento do iPhone. Nos dispositivos, acessam-se milhares de horas continuamente atualizadas de desenhos, jogos e aplicativos ao alcance dos dedinhos que deslizam dentre as telas com facilidade. O problema: em muitas das vezes os pais não conseguem acompanhar o que está conquistando a atenção dos pequenos e deixam as responsabilidade de selecionar o conteúdo aos algoritmos de sites e apps que ainda estão longe de serem perfeitos para tal tarefa. Isso é seguro?
A questão fica mais complexa em meio aos escândalos sobre vazamento de dados e privacidade envolvendo as grandes companhias do Vale do Silício. A exemplo do que teve como protagonistas o Facebook e a consultoria política Cambridge Analytica, que usaram, sem a permissão adequada, os dados de milhares de usuários da rede social para impulsionar a campanha do presidente americano Donald Trump. A pergunta: estariam as crianças livres de um escrutinamento semelhante das informações que elas colocam na internet e que, na lógica do mundo conectado, podem atrair interesses indevidos? Pelo o que indica uma nova polêmica envolvendo o Google e o YouTube, a resposta tende a ser não.
Programas gratuitos e populares entre o público infantil, disponíveis na loja de apps Play Store, do sistema operacional Android, e ambos de propriedade do Google, podem estar violando leis de privacidade infantis, de acordo com um estudo divulgado em abril pelo Instituto Internacional de Ciência da Computação da Universidade de Berkeley, na Califórnia. Sete pesquisadores analisaram cerca de 6 mil aplicativos para crianças nos últimos meses e descobriram que eles podem violar regras do COPPA, a lei americana de proteção de crianças na internet.
A principal queixa é em relação a como vários aplicativos coletam dados de crianças menores que 13 anos sem permissão de seus pais. Mais de mil programas do tipo garimpam informações pelo uso de softwares cujos termos de uso proíbem (só na teoria) explicitamente seu uso por…. crianças.
Também metade dos aplicativos não conseguiram garantir medidas básicas de segurança e transmissão das informações mais sensíveis. Cada um dos que foram revisados pelo estudo já tiveram mais de 750 mil downloads. Na lista negra há nomes famosos entre esse público, como o “Where’s My Water”, da Disney, o “Minion Rush”, da Gameloft, e o programa de ensino de idiomas Duolingo.
A preocupação sobre o que os pequenos assistem e consomem vem de muito antes da era dos apps. A faixa etária adequada para que filmes e programas de televisão sejam permitidos a crianças é um debate que existe desde a criação do cinema, e das primeiras associações da indústria audiovisual, nos anos 20. Nos EUA, a Motion Pictures Association of America, uma organização privada, indica qual é a idade apropriada para uma produção sem a intervenção do governo. No Brasil, desde 1990 o Sistema de Classificação Indicativa, regulado pelo estado, exerce esse papel. Para a publicidade infantil as regras são mais novas. Em 2014, uma resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) definiu que a publicidade destinada a crianças é abusiva.
Em outras palavras, a publicidade dirigida ao público infantil é proibida no Brasil, mesmo que na prática ainda sejam encontrados diversos anúncios voltados para esse público, principalmente na internet. A censura irrestrita aos anúncios é discutível, sim. Assim como a ineficiência da fiscalização. Como prova a forma como alguns dos maiores youtubers respondem à questão. Ainda mais ao se pensar que a internet traz com ela características novas que dificultam que a plataforma seja tratada da mesma forma como foi com a TV ou com revistas e jornais.
O ponto mais recente dessa discussão é como o conteúdo disponível para crianças, precisamente no YouTube, tem disfarçado anúncios e o incentivo ao consumo entre vídeos infantis. Por muitos meses o YouTube lidou com o problema de ter na plataforma tradicional e no aplicativo Kids — versão do site para crianças menores de 13 anos — conteúdos extremistas e violentos e que propagavam teorias da conspiração. Para corrigir a falha a plataforma tomou medidas.
Atualizou-se o app, na versão para jovens, para uma versão 100% moderada por humanos. Dessa maneira, as crianças que usassem a nova ferramenta só assistiriam vídeos aprovados por pessoas, não algoritmos, em tese eliminando o risco de o site recomendar conteúdo inapropriado. Mas não aconteceu como o esperado. Ainda é possível encontrar uma infinidade de vídeos escabrosos (confira na galeria abaixo).
Já no YouTube ‘principal’, o tradicional, o que a maioria das pessoas acessa, os termos e palavras-chaves que geralmente as crianças pesquisam (nome de personagens de desenhos, brinquedos e super heróis) levam a vídeos envolvendo violência e cenas , por vezes, perturbadoras. Exemplo: num desenho animado do canal Simple Fun, que está em operação desde julho de 2017, uma mulher com uma cabeça de Minnie Mouse desce uma escada rolante e fica presa no maquinário, jorrando sangue de sua face, enquanto seus filhos (personagens dos bebês Mickey e Minnie) choram. O vídeo acumulou mais de três milhões de visualizações em um único dia.
Os youtubers com apelo infantil também estão envoltos no problema. O que não se sabe é o quanto pode ser precipitado simplesmente adotar proibições radicais em um mundo no qual as crianças conseguem também simplesmente deixar de assistir ao YouTube para navegar por conteúdos bem mais escabrosos internet afora.
Especialistas em psicologia infantil consultados por VEJA afirmam que ainda não existem estudos específicos que definam as consequências, positivas ou negativas, da exposição das crianças à internet. No entanto, há um consenso: a recomendação a pais de procurarem se manter atualizados acerca das orientações da Academia Americana de Pediatria. “Por exemplo, crianças abaixo de 5 anos não devem passar mais de 1 hora brincando com um celular ou tablet, e isso sempre com a supervisão dos pais. Caso algo inapropriado surja, cabe aos pais explicar o contexto e discuti-lo”, afirma a psicóloga americana Maryanne Wolf, , autora de livros de educação. Afinal, vale sempre lembrar de uma máxima: a responsabilidade pela criação dos filhos cabe aos pais, não a um ou outro youtuber. Muito menos, ao Estado.