É pergunta que não quer calar: os recursos de inteligência artificial (IA) serão um dia capazes de substituir a criatividade da mente humana? Uma resposta imediata pressupõe um sonoro “não”, ainda que em muitos setores de produtividade os algoritmos caminhem firme e forte, especialmente na indústria e na ciência. Na produção artística, sobejamente intelectual, os passos soam ainda tímidos. Experimentos com música clássica e pinturas entregam resultados sofríveis. Testes com tradução de literatura, entre diversos idiomas, idem.
Há, contudo, com algum espanto, avanços na produção de poesias construídas com apoio de IA — e dá-lhe, uma vez mais, questionar o que é ou não intrinsecamente humano. Pesquisadores da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, descobriram que participantes de dois experimentos não conseguiram distinguir poemas gerados por robôs daqueles escritos por mestres das belas-letras. O levantamento foi desenvolvido em duas partes. Na primeira, um grupo teve como tarefa descobrir quais poemas eram artificiais e quais eram de nomes como William Shakespeare, Lord Byron, Walt Whitman, T.S. Eliot ou Sylvia Plath, e muita gente ficou em dúvida. No segundo, outro grupo avaliou esses mesmos poemas de acordo com catorze características, dentre as quais qualidade, ritmo e beleza. “Ficamos surpresos com os resultados”, disse a VEJA Brian Cross Porter, autor do estudo. Os números mostram que as pessoas não só acreditavam que os poemas artificiais tinham sido escritos por seres humanos, gênios da pena, como avaliaram de modo mais positivo o que brotou eletronicamente. “Não esperávamos que a predileção pela IA fosse tão consistente”, diz Cross Porter.
Há genuína preocupação, real desconforto, mas convém não pôr a culpa nos computadores — até porque fomos nós que os criamos. O problema está em outro lugar: para a maioria das pessoas, a velocidade de expansão das redes sociais significou afastamento dos sonetos de Shakespeare ou das trevas imaginadas por Byron, e adeus à capacidade de separar o joio do trigo, com perdão do chavão, que parece coisa de ChatGPT. Dito de outro modo, depois de minuciosa análise dos resultados do trabalho: os participantes da pesquisa, pouco afeitos a consumir literatura, destreinados, escolheram textos mais acessíveis e, portanto, com menos nuances.
Mas, insista-se, para quem anda incomodado com a marcha da IA: nada de alarme. As traquitanas de chips são capazes, sim, de escrever com métrica elegante, mas a originalidade segue sendo coisa nossa. “Presumimos que o propósito de escrever é produzir uma poesia ótima, mas, e se a qualidade objetiva de um texto não for tão importante para nós quanto o fato de que ele comunica as ideias e experiências de outro ser humano?”, diz Jon Stone, poeta e pesquisador da Universidade Anglia Ruskin, no Reino Unido. Convém, portanto, ver o copo meio cheio. Ao serem informados de que determinados versos eram inventados a um toque de mouse e depois cotejados com trechos reais, de carne e sangue, os voluntários da investigação sorriam e então aplaudiam os clássicos, evidentemente mais ricos.
Trata-se de celebrar, tudo somado, a capacidade de distinção, que pode ser apreendida com o tempo — e aqueles que hoje misturam alhos e bugalhos saberão perceber sutilezas. As big techs estão atentas. Em outubro, o Google DeepMind tornou pública uma ferramenta capaz de adicionar uma espécie de marca-d’água a conteúdos de texto criados artificialmente. Chamada de SynthID-Text, ela faz pequenas modificações na sequência de palavras geradas por modelos de linguagem. Essas alterações são imperceptíveis para o leitor e não alteram a qualidade da resposta, mas permitem que algoritmos específicos identifiquem os produtos maquinados. Na prática, já é possível checar, rapidamente, se as poesias são fruto da civilização ou do cérebro eletrônico. “Isso me dá esperança de um futuro responsável no uso da IA”, afirma Porter.
As máquinas, por óbvio, são melhores para aprender técnicas — e que tal experimentar o manual de uso de um smartphone? Mas, reafirme-se com estrondo, e salve Castro Alves, viva Carlos Drummond, louve-se João Cabral de Melo Neto (veja no quadro, versos feitos por recursos de IA ao estilo desses três poetas), a engenhosidade de quem criou a roda e fez sonatas como as de Mozart, mas também inventou a guerra, tende a ser para sempre inigualável. Pode haver alguma confusão, mas a beleza da criação sempre vencerá.
Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2024, edição nº 2920