Em 2009, naquele outro mundo no qual vivíamos, o Google provocou espanto ao anunciar que estava desenvolvendo em seu quartel-general no Vale do Silício, na Califórnia, um veículo de passeio cuja principal característica seria a capacidade de percorrer “sozinho” ruas e avenidas bem sinalizadas.
Desde então, a corrida para saber quem apresentaria o primeiro carro autônomo de uso maciço ganhou mais participantes, vindos tanto da indústria automotiva tradicional, naturalmente, quanto do inovador setor de tecnologia. Um desses novos personagens, o histriônico sul-africano Elon Musk, dono da montadora de veículos elétricos Tesla, disse na semana passada ter tomado a dianteira da disputa. “Estou confiante, teremos a funcionalidade básica do nível 5 de autonomia ainda neste ano”, afirmou o visionário, também orgulhoso proprietário da SpaceX, empresa que há dois meses fez o primeiro voo privado com tripulação da história da exploração espacial. “Temos de solucionar apenas alguns problemas, e não são desafios fundamentais.”
O tal “nível 5 de autonomia” a que se refere Musk é quase uma senha, um abre-te sésamo para um portal de vastas possibilidades — é o estágio no qual o computador de bordo consegue conduzir o carro em todas as situações possíveis, dispensando a necessidade de um motorista “de plantão”. O padrão foi estabelecido por uma entidade internacional, a Sociedade de Engenharia Automotiva (SAE), que criou um código de fácil compreensão para o público identificar o avanço tecnológico de cada automóvel, de zero a cinco. O nível zero seria aquele carro totalmente analógico, sem assistência computadorizada alguma, no qual o motorista deve manter o controle do veículo a todo o momento — atualmente, no mercado existem modelos mais sofisticados, caso dos sedãs de luxo Audi e Mercedes-Benz (e dos Tesla, claro), equipados com tecnologia de nível 3.
A aposta de Musk, portanto, é corajosa ao antecipar o futuro para hoje. As principais consultorias apontavam a chegada ao patamar máximo de automação apenas em 2050. Mesmo que tenha de fato a tecnologia a sua disposição, dificilmente a Tesla deve liberá-la em breve. Afinal, é necessária a homologação da novidade por parte das autoridades de trânsito de cada país. E, neste caso, no qual a inovação terá em mãos a segurança de vidas humanas, a burocracia é obrigatória.
Os projetos de carros sem motoristas pareciam fadados à gaveta das principais montadoras globais. A recessão econômica provocada pela pandemia trouxe incerteza até mesmo para os grandes conglomerados do setor. Por essa razão, hoje, mais do que nunca, o avanço desse tipo de tecnologia, que soa supérflua entre tantas necessidades mais urgentes, depende das empresas que não tiveram de queimar (tanto) caixa para sobreviver. É o caso do pioneiro Google, sem dúvida, mas também da Amazon. A companhia de Jeff Bezos anunciou no fim de junho a compra da startup de mobilidade Zoox, cujo principal atrativo é seu protótipo de automóvel sem motorista — a Amazon também se tornou sócia da Rivian, uma montadora de picapes movidas a bateria. Elon Musk, fanfarrão como sempre, fez uma provocação ao rival Bezos, chamando-o de “copycat” (algo como imitador, em tradução livre do inglês). Mas há algo que a maior varejista do mundo domina como ninguém, a logística, e por isso a compra da Zoox chamou atenção: ela pode significar atalho para a chamada “última milha”, o trajeto final de uma encomenda ao endereço do cliente.
Saber a hora de entrar em um novo negócio, mesmo quando parece ser prematuro, e um tantinho futurista demais, é segredo do sucesso de grandes companhias. Foi o que aconteceu com a IBM nos anos 1990 e com o próprio Google, o precursor dos automóveis sem motorista, depois do estouro da bolha da internet, em 2000. Não é à toa, portanto, que o valor de mercado da Tesla tenha subido tanto nos últimos tempos. As ações da fábrica de carros elétricos de Musk superaram a casa dos 1 200 dólares no mês passado — elas valiam cerca de 200 em maio de 2019. Tal valorização fez a companhia superar em valor de mercado a Toyota, a maior montadora do planeta, que põe todo ano nas ruas cerca de 10 milhões de novos carros, capacidade de produção 27 vezes superior à da Tesla. Muitas vezes a movimentação do mercado é exagerada, há recuos, mas o interesse pelos automóveis sem seres humanos ao volante parece ser irreversível.
Publicado em VEJA de 22 de julho de 2020, edição nº 2696