No mercado automotivo, superar a marca de 10 000 unidades vendidas em um ano não é lá grande coisa. No Brasil, é número equivalente à média mensal de emplacamentos dos modelos mais procurados. Nos Estados Unidos, é o que algumas montadoras negociam em três dias. Para as marcas de luxo, no entanto, pôr nas ruas 10 000 veículos com valores que ultrapassam 1 milhão de reais é feito a ser celebrado. Em 2023, a Lamborghini teve o melhor desempenho de sua história, com exatos 10 112 esportivos comercializados. É um espanto. A título de comparação: a companhia italiana vendeu apenas 8 000 unidades somadas em seus primeiros trinta anos de existência. Para alguns modelos, agora, há fila de espera de até três anos. “Estamos em nossa melhor forma”, disse a VEJA o CEO da empresa, Stephan Winkelmann.
A crise que brota em outros nichos do luxo parece ter ficado no retrovisor dos carrões. A italianíssima Ferrari registrou em 2023 o maior volume de transações anuais desde sua fundação, com 13 663 unidades — lucro de 1 bilhão de euros. A participação do Brasil na história de sucesso é pequena, mas não desprezível. A Lamborghini vendeu trinta unidades no país no ano passado e acaba de abrir um novo showroom em São Paulo. A Ferrari anunciou a chegada do novo modelo, Purosangue, por cerca de 7,5 milhões de reais. Detalhe: a espera por um exemplar, pelas bandas de cá, chega a dois anos. Outras fábricas do topo da pirâmide têm aproveitado a tração. As britânicas Rolls-Royce, Bentley e Aston Martin também registraram bons resultados em 2023 e correm firmes por fora.
A explicação para o fenômeno é interessante e não pode ser desdenhada: a acumulação de riqueza, em parte da sociedade, durante a emergência sanitária da Covid-19, que freou o planeta, mas não os investimentos da roda financeira. “A faixa de consumidores de luxo é maior do que antes da pandemia”, diz Winkelmann, da Lamborghini. “Temos mais clientes do que há dez ou vinte anos.” Mas, é claro, para além do empuxo dos dólares e euros, houve visão estratégica. As montadoras do nicho souberam explorar as demandas do mercado automobilístico global, principalmente a sede pelos grandalhões SUVs. O Urus, da Lamborghini, é um fenômeno de vendas e representa hoje 60% dos emplacamentos da italiana. A Ferrari, inicialmente resistente à tendência, acabou se rendendo e desenvolveu o Purosangue — o nome deixa claro, aliás, que a alma da companhia está lá, sob a enorme carroceria. A Bentley tem o Bentayga, outro êxito. A Aston Martin ostenta o DBX 707, e a Rolls-Royce, o Cullinan.
O pico atual pode ser, segundo analistas, o derradeiro suspiro bilionário da era dos motores a combustão. E luxo, em futuro breve, estará atrelado a zelo com o ambiente, sem o qual haverá mau gosto, simples assim. A pressão por mudanças nas frotas de veículos rumo à eletrificação é imparável. Entre os fabricantes de esportivos, é verdade, o processo tem sido um pouco mais lento, focado inicialmente nos híbridos. O elétrico da Lamborghini, nas pranchetas e computadores, deve sair da linha de montagem em 2030. Na Ferrari, os modelos elétricos já representam parte relevante das vendas. A Rolls-Royce apresentou recentemente o Spectre elétrico, nova versão de um clássico.
A mudança de direção é inexorável, atenta aos interesses dos novíssimos consumidores — para eles, a força magnética das máquinas sobre quatro rodas é eterna, mas desde que não sejam sujonas. O desafio, agora, é provar para os amantes da velocidade luxuosa que a eletricidade não subtrai o charme de sempre. É missão complicada, mas longe de ser impossível. E continuará a ecoar uma frase de Ferruccio Lamborghini (1916-1993), o criador do ícone metálico: “Nunca parei de pensar no carro ideal”.
Publicado em VEJA de 5 de abril de 2024, edição nº 2887