Nos cenários de faz de conta cada vez mais reais criados pela indústria dos videogames sobram tiros, porradas e bombas. Os jogos mais populares reproduzem na tela o herói forjado nos filmes de ação de Hollywood, em que o machão de bíceps avantajado luta contra tudo e contra todos para completar sua missão. Os excessos de testosterona frequentemente respingam fora da tela — o ambiente nas multimilionárias desenvolvedoras de games é notoriamente machista e insalubre para quem não é homem, dificuldade que se repete no mundinho dos jogadores. Pressionada pela onda inclusiva e antipreconceitos cada vez mais presente na sociedade, porém, a indústria está mudando e a prova disso é o crescente número de produtos em que os personagens se inserem abertamente na comunidade LGBTQIA+, para alegria de um time de loucos por jogos eletrônicos que, de tão atuante, ganhou até nomenclatura própria: são os gaymers.
Um dos exemplos mais recentes da diversão inclusiva é o premiado The Last of Us II, da Naughty Dog, em que uma personagem assumidamente lésbica sai em busca de vingança em um universo pós-pandêmico e, em sua jornada, se relaciona com mulheres e questiona os próprios valores. O enredo não trata especificamente de diversidade — a sexualidade da heroína é apenas um dos aspectos de sua personalidade, o que provavelmente ajuda a explicar seu sucesso. De acordo com levantamento do Gayming Mag, site exclusivamente voltado para esse público, cerca de 200 jogos que tratam a homossexualidade e temas afins de maneira aberta foram lançados no último ano, boa parte deles desenvolvida pelas marcas mais conhecidas do mercado. “As desenvolvedoras maiores estão correndo para não ficar defasadas”, explica o empresário Arison Uchôa, presidente da associação de jogos virtuais do Ceará.
Quanto mais produtos são lançados, mais visibilidade ganha a comunidade dos gaymers, até recentemente pouco relevante para a indústria. A streamer trans Sabrina Pacheco, conhecida nas redes como Sabrinoca, faz sucesso com transmissões em que interage com pessoas assumidamente gays enquanto se aventura nos consoles. A contrapartida negativa é que o preconceito, que sempre existiu, também ficou mais evidente e acirrado. “Existem pessoas que veem as minhas lives só para fazer comentários ofensivos e homofóbicos”, diz Sabrina. Uma pesquisa realizada no Reino Unido revelou que 40% dos gaymers enfrentam situações de homofobia quando estão on-line com outros jogadores.
Coibir comentários homofóbicos é um desafio para as grandes empresas. A Riot Games, dona da franquia League of Legends, que reúne milhões de fãs em todo o mundo — e adicionou no ano passado personagens trans e gays a seu universo fantástico, no enredo de Rise with Me (Leona and Diana) —, pune desde 2018 os jogadores intolerantes com perda temporária do cadastro. Tanto o novo tema quanto a punição são reações a processos movidos por funcionárias acusando a empresa de ser sexista. A Riot também implantou um comitê para garantir diversidade nos jogos. “Ele tem sido vital na construção de uma comunidade inclusiva, no ambiente interno da empresa e no desenvolvimento de produtos”, afirma Diego Martinez, gerente-geral da Riot Games no Brasil. Outros dois gigantes do mercado, a Activision, dona da famosa franquia de guerra Call of Duty, e a Ubisoft, envolveram-se recentemente em denúncias de assédio sexual feitas por funcionárias.
Reconhecer-se na tela é uma conquista para os jogadores que não se encaixam no perfil de macho alfa digital. “Eu não defendo que os jogos tenham histórias gays. Só quero ser representada de maneira fiel e plausível”, diz Giovana Bérgamo, 25, que se identifica como lésbica. O próprio herói fortão, quem diria, já começa a rever suas convicções. No Red Dead Redemption 2, um típico caubói machista e violento vai suavizando suas atitudes até terminar servindo de modelo de bom moço para um grupo de bandoleiros que se redime e passa a fazer o bem. O jogo, ao que tudo indica, está virando.
Publicado em VEJA de 5 de outubro de 2022, edição nº 2809