Durante 22 anos, os apresentadores britânicos Jeremy Clarkson, James May e Richard Hammond exploraram os limites dos programas de carros na televisão. Viajaram para destinos incríveis a bordo de veículos icônicos, testaram os esportivos mais impressionantes e ajudaram a popularizar a cultura associada ao ato de dirigir. Agora, estão encerrando de vez a parceria com o último episódio de The Grand Tour, disponível no Amazon Prime. Trata-se de uma épica expedição pelo Zimbábue e por Botsuana, na África, ponto final de aventuras divertidíssimas. “Estou ficando muito gordo e velho para dirigir os carros que gosto e não estou interessado em dirigir aqueles que não gosto”, diz Clarkson, ao justificar, com humor, a decisão de desligar os motores.
Os três começaram a trabalhar juntos em Top Gear, da emissora britânica BBC. O programa, originalmente veiculado em 1977, foi repaginado em 2002 como uma plataforma para tratar de automóveis. Os apresentadores testavam lançamentos e comentavam notícias da indústria. O que tornava o modelo especial era a irreverência, tanto na maneira como faziam o trabalho jornalístico quanto nas pautas imaginadas. Embora tivesse segmentos convencionais, o programa ganhou edições especiais, pequenos filmes colados a viagens por cenários exóticos. Em cada périplo, o trio escolhia os modelos usados e se embrenhava em perrengues para chegar ao destino final. Em 2015, Clarkson foi afastado da BBC depois de brigar com um produtor. No mesmo ano, fecharia parceria com o Amazon Prime, para onde levaria os dois colegas e, juntos, virariam estrelas, ao adaptar a fórmula do Top Gear para o que viria a ser The Grand Tour. E o que se parecia com a ideia original, lá de trás, da BBC, deu um cavalo de pau em torno de expedições mirabolantes, atraindo até quem não gostava de quatro rodas.
A relevância do trabalho de Clarkson, May e Hammond foi enorme na indústria. Top Gear se tornou um dos maiores sucessos da televisão do Reino Unido. Tradicionalmente exibido na BBC Two, segundo canal da emissora britânica, migrou para a BBC One, o mais antigo e badalado, transmitido em outros países. Embora o Amazon não divulgue números oficias, The Grand Tour foi responsável por trazer milhares de novos assinantes para o serviço. O legado da trinca reverbera até hoje, e é provável servir de carbono para ideias que despontarão em breve. Canais de YouTube como o Donut bebem da irreverência original dos apresentadores, e outros programas, como Acelerados, com Rubens Barrichello, exploram as voltas rápidas popularizadas no Top Gear e repaginadas em The Grand Tour.
A trajetória dos três, no entanto, também foi marcada por uma dose generosa de polêmicas — o que só faz alimentar o mito eletrônico. As piadas e os comentários, muitos deles preconceituosos, atraíram a fúria de uma parcela do público. Clarkson, em especial, é uma figura controversa. Suas visões políticas, ambientais e sociais estão longe de ser unanimidade, de mãos dadas com estúpido conservadorismo. Para uma parcela dos críticos, o final da parceria chegou tarde e não há mais espaço para a postura inconsequente dos apresentadores.
O encerramento de The Grand Tour, no entanto, não significa o sumiço definitivo dos três criadores da televisão e do streaming. Clarkson tem um programa de sucesso no Prime atrelado a seu trabalho à frente de uma fazenda na Inglaterra. May tem outra série na plataforma, voltada para o turismo, e mostra talento como youtuber. Hammond também mantém um canal na plataforma de vídeos. Mas aquela fagulha original que tornou o jornalismo de carros na televisão tão instigante se apagou de vez. Pena.
Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2024, edição nº 2911