O Brasil, não há dúvida, é palco de imensas e inaceitáveis contradições. Mesmo com renda média mensal per capita de escassos 1 376 reais e 11,3 milhões de pessoas desempregadas, é também um dos países mais digitais do mundo. O contraste ficou evidente em uma pesquisa realizada pelo Centro de Tecnologia Aplicada da Fundação Getulio Vargas (FGVcia), que traz um retrato abrangente do mercado de tecnologia de informação no país. Apurado entre 2 650 médias e grandes empresas que atuam em território brasileiro, o levantamento traz números impressionantes (veja um resumo no quadro). A fotografia mostra que estamos muito bem no atacado, acima da média mundial em alguns recortes. No varejo, contudo, é preciso preencher lacunas, melhorar políticas públicas e levar o acesso à internet para todas as camadas da população.
A pesquisa mostra que há hoje 447 milhões de dispositivos digitais em uso doméstico ou corporativo no país. A categoria engloba computadores de mesa, notebooks, laptops, tablets e smartphones. Em uma conta simples, são mais de dois equipamentos por habitante, incidência semelhante a de nações ricas. No entanto, o resultado ainda está distante do país mais tecnológico do mundo, os Estados Unidos. Segundo um levantamento realizado em 2020, o americano médio tem acesso a pelo menos dez aparelhos desse tipo — misto de obsolescência acelerada e exagero de consumo. Nos rankings de digitalização, uma boa surpresa vem da Estônia, o pequeno país do Leste Europeu. Atualmente, 99% dos serviços públicos locais são acessados de maneira on-line e estudos revelaram que a alta conectividade acelerou o PIB.
Uma análise apressada pode sugerir que os números brasileiros são turbinados pela presença maciça de smartphones. De fato, eles são onipresentes no país. Há 242 milhões de celulares inteligentes em funcionamento, mais do que os 212,2 milhões de habitantes. O Brasil já é o quinto maior mercado do mundo, posição notável considerando que é atualmente apenas a 13ª economia do planeta. Tudo isso é verdade, mas uma espiada em outro indicador mostra que há muitos avanços em diversas áreas. Um exemplo marcante é o total de computadores ativos, subcategoria que inclui apenas os desktops, notebooks e laptops, além dos tablets. São 205 milhões em operação neste exato momento, mas a projeção da FGV estima que o número deverá pular para espetaculares 216 milhões no início do próximo ano, atingindo assim a marca simbólica de um aparelho por habitante. Isso, claro, se não houver nenhuma grande turbulência econômica até o fim do ano, o que não é de se duvidar em se tratando de Brasil — e convém sempre estar atento a freadas bruscas.
A pandemia — sempre ela — teve papel determinante no aumento das vendas de computadores em 2021, muito em decorrência da necessidade de manter o trabalho e o ensino remotos enquanto as regras sanitárias de distanciamento social estavam em vigência. O resultado foi um crescimento de 27%, com 14 milhões de unidades vendidas. Com a manutenção do modelo híbrido nos escritórios e escolas, a tendência é que em 2022 o mercado cresça perto de 10%. “Comparado com o mundo, nós estamos muito bem, obrigado”, afirma Fernando Meirelles, professor de TI da FGV, coordenador do levantamento.
Um computador e um celular por habitante são índices notáveis para uma nação que está muito longe de ser considerada desenvolvida (basta dar uma olhada nos indicadores de saneamento para se assombrar com os gargalos brasileiros). A questão é que o Brasil tem uma base digital relevante, mas ela não está bem distribuída. As classes mais baixas usam modelos muito limitados em termos de recursos. Isso traz sérios problemas, como o enfrentado pela Caixa Econômica Federal, que precisou refazer várias vezes seu aplicativo para o pagamento do programa Auxílio Brasil.
O mundo corporativo tem papel determinante na digitalização do país. Os investimentos em TI das empresas já equivalem a 8,7% de suas receitas, número que se aproxima dos índices da China, que tem sede por inovação. Outro indicador relevante apontado pela pesquisa é o gasto médio anual das empresas com tecnologia por funcionário, que está em torno de 50 000 reais. O comportamento varia conforme o tamanho da companhia e o ramo de atuação: em serviços, a média de gastos é de 58 000 reais. A indústria bancária é campeã absoluta nesse quesito, com 125 000 reais desembolsados para cada empregado. Os bancos passam por digitalização sem precedentes. Os aplicativos de pagamento, as carteiras virtuais e o uso da inteligência de dados para conhecer os clientes revolucionaram o setor e tornaram os bancos nacionais competitivos no cenário internacional.
Pode até parecer exagero, mas o Brasil é hoje uma das nações mais abertas para a inovação. Uma maneira de comprovar tal afirmação é o universo das startups. Nos últimos anos, o país virou um dos celeiros mundiais para empresas iniciantes que trazem em seu DNA propostas transformadoras. De acordo com a Associação Brasileira de Startups, em 2021 foram abertas mais de 1 400 firmas desse tipo. No ano passado, as startups receberam o recorde de 10 bilhões de dólares em investimentos, quase o triplo do valor movimentado em 2020. Na comparação com pares internacionais, o Brasil faz bonito. Atualmente, aparece em nono lugar entre as nações com mais unicórnios, como são chamadas as novas empresas avaliadas em pelo menos 1 bilhão de dólares.
O Brasil digitalizado é uma realidade inescapável. A explosão de investimentos em tecnologia da informação e das vendas de aparelhos digitais durante a pandemia, no entanto, não explica sozinha como esse caminho está sendo percorrido. Segundo Felipe Mendes, diretor-geral da empresa de pesquisas GfK, o que vem crescendo mesmo é o acesso — em 2020, 83% dos lares brasileiros tinham banda larga, contra 71% no ano anterior. “O poder da disponibilidade da internet associada à penetração do celular é de fato o grande elemento de digitalização sobre qualquer outro produto que a gente possa pensar ou discutir”, afirma Mendes. Deve-se celebrar o Brasil digitalizado, atalho para o aumento de produtividade. Insista-se, contudo: há avanços extraordinários, mas precariedades também. Equilibrar o jogo é um desafio monumental, que não pode jamais ser negligenciado — a sorte é que a tecnologia pode ajudar a diminuir o fosso.
Publicado em VEJA de 8 de junho de 2022, edição nº 2792