Inventados por homens, para homens (ou meninos, já que a febre começa cedo), os videogames nasceram e cresceram como um reduto masculino, com pouca representação feminina tanto entre jogadores quanto nos estúdios em que são produzidos. Nos últimos tempos tem vindo a público a face mais sombria dessa, digamos, reserva de mercado: o ambiente de discriminação e degradação constante das mulheres que trabalham nos gigantes do ramo. O caso mais gritante é a ação que o Departamento de Emprego e Moradia Justos da Califórnia, encarregado de proteger os cidadãos de atitudes discriminatórias, está movendo contra a Activision Blizzard, dona dos megapopulares World of Warcraft e Call of Duty, por acobertar “uma cultura generalizada de machismo no ambiente de trabalho”. A empresa qualificou as acusações contidas na investigação de dois anos, que levou ao processo, de “vazias e irresponsáveis” — o que motivou uma greve de 1 500 funcionários e protestos em frente aos estúdios na Califórnia.
O inquérito comprova que a Activision “estimulou a cultura sexista”, pagando salários mais baixos e promovendo menos as mulheres em funções semelhantes às dos homens. No trabalho, diz, elas foram submetidas a assédio sexual constante, “incluindo apalpadas, comentários e insinuações”, tudo com pleno conhecimento da direção. Entre as práticas condenáveis mencionadas está o cube crawl, adaptação do pub crawl (maratonas para beber de bar em bar). Na happy hour do escritório, bêbados vão às mesas das funcionárias para importuná-las.
Demitido sem explicação oficial no ano passado, Alex Afrasiabi, diretor criativo do World of Warcraft, é citado nominalmente no processo por tentar beijar colegas à força durante as convenções anuais, nas quais seu quarto de hotel era chamado de Cosby Suite — com direito a pose de grupo de amigos dentro dele erguendo foto do comediante americano Bill Cosby, processado por assédio e estupro. “Como alguém que foi assediada, sofreu retaliações e viu uma grande amiga sair traumatizada do contato com detentores de altos cargos, não tenho palavras para expressar meu alívio”, declarou Cher Scarlett sobre a ação. A VEJA, uma mulher que atua na franquia Call of Duty e não quis se identificar disse ter sido vítima de abusos sem poder reagir, porque a violência era cometida “pelo superior a quem eu deveria levar a denúncia”.
Em paralelo à greve, mais de 3 000 pessoas que trabalham ou trabalharam na Activision assinaram uma carta aberta expressando apoio à ação judicial. O presidente da empresa, Bobby Kotick, pediu desculpas e anunciou medidas imediatas, entre elas a substituição do presidente da Blizzard, J. Allen Brack, por uma mulher, Jen Oneal. O diretor global de recursos humanos, Jesse Meschuk, também deixa o cargo. A Activision Blizzard é resultado da fusão dos dois gigantes em 2008, que juntaram seus nomes e equipes para formar uma das maiores desenvolvedoras de jogos interativos do mundo. Em 2019, seu faturamento chegou a 8 bilhões de dólares e são seus os dois games mais vendidos em 2020, ambos do título Call of Duty.
A indústria dos videogames, que no Brasil movimenta mais de 1 bilhão de dólares por ano, é dominada, em todos os níveis hierárquicos, por homens, a maioria brancos — dos 9 500 funcionários da Activision, apenas 20% são mulheres. O comportamento tóxico nesse ambiente foi exposto pela primeira vez em 2018, no portal especializado Kotaku, que mostrou a cultura machista predominante na Riot Games, desenvolvedora do League of Legends, produto que fez do e-sport um fenômeno. Em 2020, uma onda de acusações dentro da Ubisoft, dona do Assassin’s Creed, resultou em demissões no alto escalão e em um processo na França — medidas que, pelo jeito, não resolveram o problema. Em uma carta aberta de apoio aos colegas da Activision Blizzard, 500 funcionários da Ubisoft espalhados por 32 escritórios na Ásia, Europa e América do Norte afirmam que a empresa segue discriminando as mulheres. Se nada mais conseguir conter a frat boy culture — como é chamado o tratamento inferior de mulheres que se tornou marca registrada dos clubes de universitários nos Estados Unidos — nas empresas de videogame, pode ser que o peso no bolso fale mais alto: nos últimos dias, os campeonatos de e-sports da Activision perderam anúncios e patrocinadores e o valor de mercado da empresa caiu 10 bilhões de dólares.
Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2021, edição nº 2751