Vistas durante muito tempo como um símbolo da cultura britânica no resto do mundo, as famosas cabines telefônicas vermelhas espalhadas pelo Reino Unido se tornaram objeto de culto ao longo de quase um século de existência. Além de proporcionar ao público a possibilidade de fazer ligações sob abrigo das intempéries, as irmãs mais velhas dos nossos orelhões também mexeram com a imaginação de muita gente que via nelas um espaço seguro para ocultar conversas, negociações ilícitas e até fetiches. Desde que foram criadas, elas se integraram à paisagem urbana e marcaram presença em livros, peças, filmes e séries de TV. Na era da linguagem digital, em que os smartphones parecem uma extensão do corpo humano, estariam fadadas a ser apenas indicadores de uma época ou peças de museu se o Escritório de Comunicações (Ofcom, na sigla em inglês), órgão regulador de telecomunicações do país, não se mobilizasse para preservá-las.
De acordo com a agência britânica, 96% dos adultos têm celular no Reino Unido. Além disso, as quatro redes móveis em atividade ampliaram muito a cobertura do sinal. E, no entanto, como gesto de preservação de um patrimônio cultural, o governo investirá na atualização das famosas cabines. Elas serão retocadas e, naturalmente, ganharam avanços digitais. O Grupo BT, empresa de telecomunicação responsável pela manutenção, está avaliando quais podem ser poupadas do desmonte. Há uma série de regras para evitar o fechamento de 5 000 delas em áreas com sinal ruim ou consideradas sensíveis. As unidades que receberam mais de 52 ligações nos últimos doze meses sobreviverão gloriosamente. Hoje, há cerca de 21 000 em funcionamento. De maio de 2019 a maio do ano passado, foram feitas quase 150 000 chamadas das cabines, entre as quais 45 000 foram para serviços de prevenção ao suicídio e de assistência a crianças.
A história dos quiosques, como as cabines são chamadas oficialmente no Reino Unido, remonta aos anos 20. Em 1924, a Comissão Real de Belas Artes abriu um concurso para criar postos públicos de ligações telefônicas. No ano seguinte, a ideia de sir Giles Gilbert Scott, nomeado cavaleiro no ano anterior pelo Rei George V, acabou sendo escolhida. Apelidada de K2 (em inglês, Kiosk 2), foi apresentada em 1926, mas em razão dos altos custos de produção só seria utilizada extensivamente em 1928. Scott fez mudanças nos materiais usados, mas manteve a estrutura e, especialmente, a cor rubra escolhida para facilitar sua identificação a distância.
O debate em torno de sua manutenção é de grande relevância para populações pobres e vulneráveis. Selina Chadha, diretora da Ofcom, diz que manter uma linha telefônica pública em locais estratégicos pode ser uma tábua de salvação em momentos de grande necessidade. “Também queremos ter certeza de que as pessoas sem cobertura móvel, geralmente em áreas rurais, ainda possam fazer chamadas”, diz ela. “Ao mesmo tempo, planejamos promover o lançamento de novas cabines telefônicas com wi-fi gratuito e carregamento de celulares.” No Brasil, o famoso orelhão, criado pela designer chinesa Chu Ming Silveira, em 1971, não tem o charme de sua irmã britânica — e, aberto, não isola o som da rua. Há cerca de 116 000 aparelhos em operação, dos quais 54 000 estão no Sudeste. São usados por populações carentes e em áreas rurais sem sinal de celular. É o caso de cuidar deles com carinho, ainda — mas virá o dia em que serão desnecessários, até porque a precariedade dos que ainda existem é desoladora.
Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2021, edição nº 2765