Poucas coisas são mais humilhantes para um executivo que reconhecer que foi ingênuo em uma negociação. Foi exatamente o que aconteceu com Patrick Spence, presidente da americana Sonos, fabricante de sistemas de áudio sediada na Califórnia e famosa por seus produtos inovadores. Em um constrangedor mea-culpa, feito em janeiro, ele contou como um acordo para o fornecimento de equipamentos de alta tecnologia ao Google se transformou em um litígio jurídico com um colosso corporativo que vale mais de 1 trilhão de dólares. Entusiasmados com um contrato milionário para a venda de caixas de som e dispositivos de comando de voz, os executivos da Sonos não hesitaram em entregar ao novo parceiro desenhos técnicos de suas invenções. O casamento que parecia promissor acabou em dois processos recém-abertos em que a Sonos acusa o Google de roubo de propriedade intelectual e exige, além de uma gorda indenização, a interrupção das vendas de todo produto ou serviço do Google que incorpore tecnologias desenvolvidas pela empresa. “O Google tem descarada e conscientemente copiado nossas tecnologias patenteadas. Apesar de nossos esforços nos últimos anos, o Google não mostrou nenhuma intenção de trabalhar conosco em busca de uma solução. Não temos alternativa a não ser o litígio”, disse Spence ao anunciar a abertura dos processos.
A disputa jurídica entre a Sonos e o Google é parte de uma guinada na forma como fornecedores, parceiros comerciais, instituições governamentais e ativistas passaram a lidar com os conglomerados da internet — basicamente Google, Facebook, Apple e Amazon, empresas também conhecidas como big techs. E isso ocorre apesar do pavor que todos sentem de enfrentar os gigantes, uma vez que os negócios estão cada vez mais dependentes deles. Assim como aconteceu com a Sonos em relação ao Google, outras companhias igualmente digitais, como o Yelp (site de avaliação de serviços e produtos), o Spotify (streaming de música e podcasts) e a Oracle (desenvolvedora de softwares de base de dados), vêm apontando o excessivo poder — e abusos — das big techs. A preocupação com a dominância das empresas de tecnologia é tal que chegou à disputa eleitoral pela Presidência dos Estados Unidos. Os democratas Bernie Sanders e Elizabeth Warren transformaram o assunto em bandeira de campanha e mesmo o presidente Donald Trump, defensor do laissez-faire nos negócios, declarou em junho que “está óbvio que há um monopólio ali, e algo precisa ser feito”.
No âmbito federativo, 51 estados e territórios (ou seja, quase todos à exceção da Califórnia e do Alabama) se uniram para uma investigação antitruste contra o Google por suas práticas anticompetitivas na indústria da publicidade. Quarenta e sete deles estão também investigando o Facebook. Equivalente ao brasileiro Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a Comissão Federal de Comércio (FTC, na sigla em inglês) anunciou há duas semanas uma ampla análise de centenas de aquisições feitas pelas cinco big techs (a Microsoft de Bill Gates também sofre escrutínio). O órgão quer avaliar se os grandes conglomerados estão criando uma espécie de zona da morte em torno de seus negócios em que simplesmente engolem qualquer empresa invasora que possa se tornar ameaça no futuro. “Vamos olhar com cuidado as compras de companhias nesse setor e também avaliar se as agências federais estão sendo cuidadosas o suficiente com tais operações”, explica o presidente da FTC, Joseph Simons.
O governo americano, em geral, é duro ao zelar pela livre concorrência. Opositores do poder e do tamanho das big techs costumam invocar o caso da American Telephone and Telegraph (AT&T) como um possível modelo para a situação atual. Virtualmente a única operadora de telecomunicações dos Estados Unidos e do Canadá, a empresa fundada no século XIX detinha ainda o monopólio na fabricação dos equipamentos. Em troca, entregava serviços ruins a preços muito altos. Depois de uma série de tentativas de solucionar o problema, em 1982, uma ação do Departamento de Justiça (equivalente ao nosso Ministério da Justiça) levou ao desmembramento da AT&T em nove operadoras regionais e abriu o mercado de longa distância. Vinte anos depois, a Microsoft foi obrigada a abrir os segredos do Windows para que rivais pudessem desenvolver softwares que rodassem em seu sistema operacional. “Agora chegou o momento de discutirmos o tamanho e a influência de companhias como o Google e se não é o caso de exigir o desmembramento em empresas menores”, diz Rob Nail, fundador e CEO da Singularity University, centro de estudos superiores no Vale do Silício.
As big techs, naturalmente, lutam para manter sua posição. Nos Estados Unidos, 89% das buscas na internet são feitas no Google. De cada 100 americanos com idade entre 15 e 35 anos, 95 usam algum produto do Facebook (o que inclui WhatsApp e Instagram). A Amazon concentra 75% das vendas de livros e eletrônicos. E 99% dos smartphones utilizam os sistemas operacionais do Google ou da Apple. A seu favor, os gigantes argumentam que tamanha concentração não afeta o bolso do consumidor. “Há mais opções hoje do que em qualquer outra época, a um custo cada dia mais baixo, graças a essas companhias”, defende Peter Leroe-Muñoz, porta-voz do Silicon Valley Leadership Group, que representa, entre outras, Google, Facebook e Apple (as empresas, procuradas, não se pronunciaram sobre o assunto).
Em meio à polêmica, ninguém sabe com certeza o que vai acontecer. Além do desmembramento, discute-se a possibilidade de tratar tais companhias como prestadoras de serviços essenciais — a exemplo do fornecimento de água ou energia elétrica — e estabelecer um teto para suas margens de lucro. Outra alternativa, mais provável, seria impedir novas aquisições por parte dos gigantes. O fato de essas opções estarem na mesa só confirma que os colossos do Vale do Silício já não são mais vistos com os mesmos olhos.
Publicado em VEJA de 4 de março de 2020, edição nº 2676