Era inevitável, questão de anos, meses, dias, horas, minutos ou segundos. Quando os smartphones vieram ao mundo, os relógios de pulso pareciam estar destinados ao limbo. Afinal, bastaria olhar para a tela dos aparelhos, que não apenas mostravam a hora com exatidão, mas realizavam diversas outras funções. Não foi o que aconteceu — e as notícias de morte dos clássicos objetos soaram exageradas.
Sobreviveram, até que se anunciou um segundo falecimento. Os smartwatches, os relógios inteligentes que mostram mensagens, contam os passos e podem até fazer um eletrocardiograma, representariam nova e definitiva derrocada de seus irmãos mais velhos. Não necessariamente, embora tenham se espalhado com velocidade. Há reação, e o pulso ainda pulsa, como diria Arnaldo Antunes.
A vanguarda da contrarrevolução é liderada pela fabricante japonesa Casio, fundada lá na pré-história, em 1946. Graças a modelos de design atemporal, sabe-se agora, e ao apelo crescente entre as gerações mais novas, a empresa ajudou a tornar o relógio uma forma de expressão de estilo, muito mais do que uma ferramenta para medir o tempo com precisão. Foi um passo inesperado e celebrado.
Os primeiros modelos, nos anos 1970, tinham caixa de resina, mostrador digital e algumas funções básicas, mas úteis, como alarme e cronômetro. “A Casio foi uma das primeiras marcas asiáticas a bagunçar o monopólio das fabricantes suíças, oferecendo equipamentos de boa qualidade e acessíveis”, diz Mariana Cerone, professora do hub de moda e luxo da ESPM. Em 1983, despontaria a linha G-Shock (veja no quadro), que se tornaria carro-chefe nas décadas seguintes. O lançamento de uma peça dita como indestrutível, forte e firme, inventou um caminho, ao abrir uma avenida então inexistente.
O engenheiro Kikuo Ibe já trabalhava para a Casio quando viu o relógio mecânico que havia recebido de presente do pai cair no chão e se espatifar. Decidiu, então, desenvolver um modelo capaz de aguentar uma queda de 10 metros, ter uma resistência à pressão da água de 100 metros de submersão e uma bateria que durasse dez anos. Foram duas centenas de protótipos até que Ibe teve a ideia de isolar o movimento do relógio, a peça principal, dentro de um sistema à prova de impactos. A ideia veio ao ver uma criança brincando com uma bola de borracha. O primeiro G-Shock foi lançado há exatos quarenta anos, e desde então se tornou um fenômeno de vendas. Em 2017, a divisão de relógios ultrarresistentes bateu 100 milhões de vendas. O estilo “parrudo” dos relógios G-Shock conquistou celebridades, como a empresária Kim Kardashian e o rapper Pharrell Williams, flagradas com os modelos japoneses no pulso, de modo ostensivo. “Apesar de serem ótimos produtos, os relógios inteligentes são limitados a um único formato”, disse Ibe a VEJA. “Com nossos relógios, há uma enorme variedade de cores e formatos. E as pessoas usam isso para mostrar ao mundo quem são.”
A longevidade ancorada no estilo se explica, em parte, pela nostalgia, uma necessidade humana, demasiadamente humana. Afinal, embora a Casio tenha lançado inúmeros modelos ao longo dos anos, há uma clara preferência do público pelas versões retrô. “As marcas entenderam que é possível usar a nostalgia para cativar o público que é economicamente ativo hoje”, diz Cerone. Quem foi jovem nos anos 1980, por exemplo, compra hoje reedições dos modelos clássicos de outrora. Olhar para o catálogo e relançar sucessos de outras épocas, portanto, virou estratégia — que muitas outras empresas, além da Casio, seguem regiamente. A americana Timex, conhecida por seus relógios acessíveis, também tem posto nas prateleiras alguns modelos antigos. Até mesmo marcas de alto luxo revisitam itens populares em anos anteriores com nova roupagem. E fica decretado que marcar horas é fundamental, mas não é tudo. Vale lembrar uma bonita frase do poeta gaúcho Mario Quintana (1906-1994), que sabia das coisas e das sutilezas das andanças da existência: “Amigos, não consultem os relógios quando um dia eu me for de vossas vidas… porque o tempo é uma invenção da morte: não o conhece a vida — a verdadeira — em que basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira”.
Publicado em VEJA de 26 de julho de 2023, edição nº 2851