Era para ser o maior IPO — termo em inglês para oferta inicial de ações — de todos os tempos. O Ant Group, braço financeiro do gigante do comércio eletrônico Alibaba, superaria os dois recordes anteriores: o da própria holding e o da Saudi Aramco, companhia saudita líder em petróleo. Abrir o capital em bolsa significa ganhar milhares de sócios que, por meio de ações, fortalecem o caixa da empresa. O mercado esperava que o Ant Group levantasse 35 bilhões de dólares quando fizesse sua oferta em novembro, mas, de repente, por ordem do governo da China, o processo foi cancelado. Na sequência, o bilionário Jack Ma, fundador da Alibaba, não foi mais visto em público.
Até a última quinta, 14, seu paradeiro era desconhecido. Sabe-se que ele vinha fazendo críticas aos reguladores do sistema financeiro chinês, os quais chamou, em uma conferência em Xangai, de “retrógrados que impediam que o crédito fluísse a indivíduos e pequenas empresas”. Ninguém do Ant Group e da Alibaba comentou o sumiço do chefe, o que aumentou ainda mais o mistério. Não foi um caso isolado: de acordo com levantamento da revista americana Forbes, pelo menos seis bilionários e grandes empresários desapareceram por um tempo após quebrar regras impostas pelo Partido Comunista Chinês.
Portanto, é fácil relacionar o desaparecimento de Jack Ma com a suspensão do IPO de sua empresa. Difícil é compreender o que está por trás da recente mobilização do partido em direção à Alibaba e a outras big techs, que cresceram exponencialmente nos últimos dez anos — com a infraestrutura do governo, é verdade, mas também com criatividade, velocidade e empreendedorismo de causar inveja a estrangeiros.
A Alibaba é uma multinacional de trilhão de dólares em faturamento, que engloba, além dos serviços financeiros do Ant Group, o aplicativo de pagamentos AliPay e as vendas on-line AliExpress, Taobao e Tmall. Graças a seu avanço e ao de outros empreendedores, o modo de consumir na China tornou-se quase inteiramente digital e o dinheiro físico desapareceu nos grandes centros urbanos. Costuma-se dizer que até mendigos pedem esmolas por transferência.
Jack Ma, o fundador desse império, é um empreendedor de 56 anos, pai de três filhos, que aprendeu a falar inglês ainda pequeno. Nascido em Hangzhou, a capital da província de Zhejiang, Ma teve forte influência ocidental em sua formação, o que faz dele um entusiasta da livre-iniciativa. Estrela em ascensão, é o criador de um programa de TV de empreendedores africanos. Chamado Africa’s Business Heroes, é similar ao Shark Tank exibido no Brasil e tem o magnata em pessoa como um dos jurados. Mas ele não se apresenta desde novembro.
Por várias razões, a importância de Jack Ma vai além de sua fortuna. Expondo-se à mídia ocidental, ele se tornou embaixador das demais big techs chinesas, afiançando ao mercado que elas estariam fora do alcance do partido comunista — asserção que se mostrou precipitada. Ao que tudo indica, o presidente Xi Jinping não quer ver as companhias que estão moldando seu país longe do controle do governo. Supostamente por esse motivo, a administração Trump empenhou uma cruzada de banimento de empresas chinesas da bolsa de Nova York.
Semanas atrás, o Ant Group passou a restringir acesso a empréstimos. Mesmo alegando ser uma campanha de consumo consciente, a Alibaba não conseguiu esconder que está passando por uma investigação antitruste: ela teria chegado a um nível de poder inaceitável para o partido. Especula-se que as demais empresas de tecnologia sejam o próximo alvo.
O certo é que o poder central não tolera desafios. Em setembro passado, o rei do mercado imobiliário Ren Zhiqiang foi condenado a dezoito anos de prisão por corrupção. Seis meses antes, ele havia criticado Xi Jinping na eclosão da Covid-19. Jack Ma é mais poderoso do que Zhiqiang. É possível que só tenha se isolado para refletir sobre sua impetuosa cutucada em um dragão que estaria ficando sonolento mas que, na verdade, nunca dorme.
Publicado em VEJA de 20 de janeiro de 2021, edição nº 2721
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