Após decolar de Roma, o piloto sobrevoa o Mar Adriático, mas logo gira à esquerda em direção ao norte, ganhando altitude e seguindo para Berlim a 800 quilômetros por hora. Em menos de noventa minutos pousa no aeroporto de Brandemburgo, onde troca o avião por um carro da mesma cor e idêntico acabamento. Ele vence o trânsito dos arredores e logo acessa a Autobahn 24, rodovia de 230 quilômetros de extensão, cujo maior trecho não tem limite de velocidade. Seu destino é Hamburgo, que também tem aeroporto. Mas quem vai lhe tirar o prazer de dirigir até lá a 300 quilômetros por hora? No dia seguinte, ele fará o caminho de volta a Berlim para decolar em seu Phenom 300E, já reabastecido, rumo a Londres, onde tem uma reunião de negócios. Seu Porsche 911 Turbo S ficará guardado no hangar até a volta.
A aventura europeia descrita acima parece roteiro de James Bond, mas pode ser a realidade do futuro proprietário do Duet, uma série limitada que combina um dos jatos executivos mais vendidos do mundo com uma lenda entre os apaixonados por carros. Trata-se de um lançamento exclusivo da brasileira Embraer, em parceria com a alemã Porsche, limitado a dez pares. A entrega será feita um ano após a entrada do pedido e, quando for vendido o último conjunto, ele não será produzido novamente. O luxo, considerado uma oportunidade única de ter o melhor de dois mundos, está sendo oferecido por 11 milhões de dólares, cerca de 60 milhões de reais.
Enquanto o Porsche 911 Turbo S é a versão top de linha de um dos carros mais rápidos que o dinheiro pode comprar (ele vai de zero a 100 quilômetros por hora em 2,7 segundos, com velocidade máxima de 330 quilômetros por hora), o Phenom 300 (e sua geração mais recente denominada “E”) é um jato leve, campeão de vendas, que, desde seu lançamento, em 2009, tem levado alguma vantagem no segmento no qual competem marcas como Learjet e Citation, entre outras. O piloto e empresário Márcio Jumpei, publisher da revista especializada HiGH, disse a VEJA que é difícil superar a aeronave brasileira nessa categoria: “O Phenom é ágil, atinge 960 quilômetros por hora, tem uma excelente cabine e é de fácil manutenção. Além disso, a versão 300E trouxe ainda mais tração, luxo e recursos”.
Parceria de empresas no marketing de produtos não é uma iniciativa inédita. No entanto, interpretar o Duet como uma venda casada para milionários seria uma simplificação injusta do conceito. Quem pousa os olhos simultaneamente no jato e no esportivo tem a sensação de que eles saíram como uma peça única de uma mesma fábrica. O design aerodinâmico do Porsche parece extensão do Phenom, e vice-versa: sem rebites nem emendas, pelo menos não que possam ser vistos. Howard Hughes, o lendário cineasta e aviador americano dos anos 1930 e 1940, obcecado por fuselagem “sem costuras”, provavelmente ficaria mesmerizado ao ver esse dueto.
A edição numerada tem características que não podem ser encontradas separadamente. Os assentos da cabine do avião (seis individuais e um duplo) têm acabamento em couro que reproduz o design e a tonalidade dos bancos do carro, enquanto o painel e a direção deste dão a sensação de voo do outro — respeitando obviamente as regras de certificação internacionais, pois as premissas anatômicas, por questão de segurança, devem ser adequadas a cada veículo. O 911 Turbo S traz cronômetro de aviação, avisos de No Step (“não pise”, típicos de aeronave) nas áreas sensíveis e o número de registro do Phenom gravado no spoiler traseiro. A pintura cinza prateada metálica deve ser reproduzida na fuselagem e, até onde foi possível apurar, o cliente não terá a opção de escolher outra cor. Em compensação, vai levar mimos como relógio de pulso e malas personalizadas do Duet. Saber quem será esse cliente, por sinal, é a maior curiosidade de quem acompanha o mercado.
A Embraer não informa se já existe lista de espera ou de quais países estariam vindo os pedidos, mas conclui-se que o comprador em potencial, além do alto poder aquisitivo, não seja um executivo com piloto, mas sim um executivo piloto. “O Phenom, apesar de ter cockpit com duplo comando, foi projetado para ser pilotado por uma só pessoa”, diz Jumpei. Ao que tudo indica, o público-alvo do Duet não será alguém disposto a compartilhar o deleite de dirigir e pilotar. O prazer muitas vezes é pessoal e intransferível, quase egoísta, mas profundamente humano. Infelizmente, neste caso, para poucos.
Publicado em VEJA de 25 de novembro de 2020, edição nº 2714