Diante da doença incurável, ou em estado terminal, a reação mais comum do paciente e dos familiares é lutar até o fim — encarar cirurgias, procedimentos invasivos, tratamentos experimentais e tudo o que possa prolongar a vida. Uma corrente da medicina, no entanto, levanta a questão: será que aceitar o fim não é o caminho para se preparar para ele da melhor forma possível? A opção por cuidados paliativos, um conjunto de providências que buscam tornar menos doloroso processo de enfrentar uma doença ameaçadora à vida ou terminal, vem ganhando cada vez mais adeptos no Brasil e estimulando grupos de ativistas de uma causa que bate de frente com a arraigada cultura, inclusive entre os profissionais da saúde, de tentar de tudo para reverter o irreversível. “Existe muito preconceito e desinformação em torno da medicina paliativa. Não se trata de desistir de tratar a doença, mas de dar atenção a todas as questões relacionadas ao paciente”, explica Daniel Neves Forte, médico à frente da equipe paliativista do Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo.
Símbolo do movimento, a jornalista paulista Ana Michelle Soares descobriu um câncer de mama no auge da juventude, aos 28 anos. A doença se espalhou e AnaMi, como ficou conhecida, resolveu viver o tempo que lhe restava da melhor forma possível e compartilhar a experiência: criou um blog de grande repercussão e escreveu dois livros sobre o assunto. Quando Ana faleceu, no fim de janeiro, aos 40 anos, depois de realizar boa parte de uma lista de últimos desejos que incluía ir a uma festa e comer dobradinha, o conceito da preparação para a morte já havia se disseminado nas grandes cidades do país.
Nos últimos meses, dois outros casos de pessoas conhecidas que chegaram ao fim da vida sob cuidados paliativos intensificaram o debate. Em dezembro, aos 82 anos, Pelé parou de responder à quimioterapia para combater um câncer de cólon. Por sugestão da equipe médica, a família, a princípio relutante, concordou em suspender o tratamento e concentrar esforços em atenuar os sintomas e promover seu conforto. No mês seguinte, Mildred dos Santos, mãe do locutor esportivo Galvão Bueno, faleceu, aos 93 anos, depois de passar um ano sendo atendida por uma equipe paliativista. Ela se foi “em absoluta serenidade, sem sofrimento, graças aos procedimentos paliativos aplicados com muito carinho”, postou Galvão nas redes sociais. “A medicina mais conservadora está acostumada a fazer de tudo, a qualquer custo, para evitar a morte. Os médicos que só dão atenção à doença precisam de um olhar mais global e humanizado”, diz Rodrigo Castilho, presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cuidados paliativos consistem “no tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais”, administrados por uma equipe multidisciplinar. O protocolo foi estabelecido pela assistente social e médica inglesa Cicely Saunders, fundadora em 1967 do St. Christopher’s Hospice, primeiro serviço a oferecer cuidado integral ao paciente terminal, com controle de sintomas e alívio da dor e do sofrimento psicológico. A ideia se disseminou pelos países avançados, onde a preparação dos pacientes para a morte é a regra hoje em dia — tendo alguns deles, inclusive, autorizado a opção radical pela eutanásia, uma espécie de suicídio assistido adotado por pessoas que preferem abreviar seu sofrimento.
Admitir que o fim está próximo, elaborar junto com a família maneiras de atenuar a dor e até pensar na melhor forma de morrer é tarefa sempre desafiadora e desconfortável. “Na cultura do Ocidente, mais individualista, quando uma pessoa morre, a sensação é de que ela desaparece, fica um vazio. Já nos locais onde existe uma consciência coletiva elevada isso não é um acontecimento desesperador, porque o morto continua de alguma forma presente naqueles com quem convivia”, explica a antropóloga Sônia Giacomini. As pessoas que conseguem transformar o medo da morte em apreço por viver relatam, em geral, resultados altamente positivos. A administradora de empresas paulista Adriana Hayashi, 41 anos, conta que conhecer e adotar cuidados paliativos foi essencial para poder lidar com o diagnóstico do câncer nos ossos em estágio avançado. “Descobri um caminho para uma vida plena e passei a valorizar o que realmente faz sentido para mim. Sou uma pessoa mais leve agora”, reconhece Adriana.
A maior parte dos pacientes que optam pelo cuidado paliativo aguarda o fim da vida no hospital ou em casa, mas existem clínicas especializadas, as chamadas “casas de transição” — ainda embrionárias no Brasil — montadas para receber pessoas nessa situação. Nelas, amigos e familiares podem entrar e sair a qualquer momento e o paciente conta com médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, nutricionistas, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais. “Cada pessoa recebe um tratamento único, de acordo com suas questões individuais. O objetivo é que o paciente chegue bem ao fim da vida”, explica Eduardo Dias, geriatra e responsável técnico pela Humana Magna, de São Paulo.
A morte pode ser menos penosa quando a consciência de que ela chegará se torna uma ferramenta de autoconhecimento. A publicitária Daniela Louzada, 45 anos, que convive há quatro com um tipo de câncer raro e inoperável no cérebro, viu o pai passar sete meses internado antes de falecer e decidiu, no seu caso, abrir mão de tratamentos agressivos em prol de mais qualidade de vida. “Quero realizar meus desejos e sonhos, porque sei que posso dormir e nunca mais acordar. A morte pode chegar de repente para qualquer um. A diferença é que eu aceito isso”, reflete. “Não é fácil se conformar com o fim da vida, mas há como se confortar. E os cuidados paliativos podem ser essa virada de chave”, resume Nazaré Jacobucci, psicóloga especialista em luto. Cedo ou tarde, o último suspiro acontece. Ele será mais suave para o doente — e para os familiares — que estiver em paz com esse fato inexorável da vida.
Publicado em VEJA de 8 de fevereiro de 2023, edição nº 2827