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O inaceitável retorno dos casos de sarampo

Um resultado da negligência na vacinação, que, por ignorância e desleixo, perdeu terreno na sociedade

Por Natalia Cuminale Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h52 - Publicado em 6 set 2019, 06h30

O sarampo voltou, vergonhosamente, para assombrar o mundo — e, lamentavelmente, o Brasil. Nos últimos três meses, o país registrou 2  753 casos, número 117% maior em relação ao mesmo período do ano passado. Para piorar, o surto tem vitimado sobretudo crianças (bebês com menos de 1 ano são os mais vulneráveis à doen­ça). As secretarias estaduais de São Paulo e de Pernambuco confirmaram quatro mortes: três bebês, de 4, 7 e 9 meses, e um adulto, de 42 anos. O constrangimento pela volta de uma doença erradicada não é, desta vez pelo menos, uma exclusividade brasileira. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o número de casos quase triplicou entre 2018 e 2019 no planeta, em especial na Europa e nos Estados Unidos. “Estamos retrocedendo e no caminho errado”, disse Kate O’Brien, responsável pelo departamento de imunização da OMS.

Transmitido por secreções, como a saliva, o sarampo é doença de alto poder infeccioso. Seu vírus reduz a eficácia do sistema imunológico e deixa o organismo suscetível a outras infecções. Em cerca de 20% dos casos ocorrem problemas graves, como pneumonia e danos neurológicos. Os efeitos são piores em crianças com menos de 5 anos e em pessoas desnutridas e com o sistema imunológico fragilizado. Aproximadamente duas crianças em cada 1 000 que contraem sarampo desenvolverão encefalite, que pode levar a convulsões, surdez ou deficiência intelectual.

A taxa de mortalidade varia muito. Nos países desenvolvidos, calcula-se uma morte para cada 1 000 casos. Nas nações muito pobres, especialmente as da África Subsaariana, o número de óbitos pode chegar a preocupantes 100 para cada 1 000. Criada na década de 60, a vacina contra o sarampo está incluída na chamada tríplice viral, junto com rubéola e caxumba. A dose garante a imunidade, ou seja, a produção de anticorpos específicos contra a doença, em 95% das pessoas.

Em tese, ninguém deveria estar falando do assunto hoje, com a doença totalmente controlada. Qual a causa, então, do passo atrás? “Simplesmente as pessoas não estão se vacinando”, responde Rosana Richtmann, infectologista do Instituto Emílio Ribas, de São Paulo (veja a entrevista). Segundo dados de 2017, a cobertura vacinal no Brasil foi de 86%. Em 2015, era de 96%. O ideal para imunizar uma população é um índice de pelo menos 95%. No caso específico do sarampo, a atenção com a vacinação tem de ser redobrada. Se um doente espirra ou tosse, o vírus permanece vivo no ar por duas horas. Um doente chega a infectar cerca de doze pessoas, o que confere ao sarampo um alto poder contagioso.

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(./.)

A redução da vacinação no mundo todo tem múltiplas causas. A mais incompreensível difunde-se nos Estados Unidos e na Europa, e felizmente ainda não pegou no Brasil: o crescimento dos grupos antivacina. O tresloucado movimento recorre à tese do gastroenterologista inglês Andrew Wakefield. Em 1998, o médico publicou, na revista científica The Lancet, um artigo em que associou a vacina tríplice a um risco aumentado de autismo. No estudo, Wakefield dizia ter acompanhado doze crianças que desenvolveram a doença depois de tomar a tríplice. Sonegou duas informações: já existiam indícios de autismo nas crianças e o médico preparava um processo contra um fabricante de vacinas. Foi desmascarado. Embora Wakefield tenha sido banido da prática de medicina, seus argumentos ainda ecoam.

Há também um ponto pouco discutido, de cunho mais comportamental. O surgimento da imunização, há meio século, fez com que gerações futuras esquecessem as consequências do sarampo. Os mais jovens chegam a não temer o retorno da doença, e médicos formados recentemente só conheceram a doença pelos livros. É triste, e até assustador, mas a sociedade parece desdenhar da relevância histórica das vacinas. A discreta e quase indolor agulhada é a resposta mais rápida e a única ao atual drama.

Publicado em VEJA de 11 de setembro de 2019, edição nº 2651

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