Na Grécia antiga, no século V a.C., Heráclito de Éfeso, um dos filósofos pré-socráticos, revolucionou o pensamento daquele tempo ao propor novas teorias sobre a origem do universo. Para ele, o mundo não era estático, nem seguia uma unidade material, como se acreditava até então, mas estava em constante transformação e movimento. “Uma mesma pessoa nunca entra no mesmo rio duas vezes”, observou, referindo-se à volubilidade do fluxo das águas. Ao mergulhar na pandemia desencadeada pelo novo coronavírus, a humanidade adicionou uma nova camada à inconstância de sua existência: ela fez as pessoas, fechadas em casa para fugir do contágio, olharem para além do espelho e refletirem sobre os rumos da vida. Agora que a vacina sopra um ar de relativa normalidade, muitos daqueles que passaram meses questionando decisões, profissões, convicções e arranjos familiares estabelecidos estão concluindo que o caminho para o futuro, tal qual o rio de Heráclito, não é mais o mesmo. ”No cotidiano, esquecemos que somos finitos, que a existência é circunstancial”, diz o professor de filosofia Jasson Martins. “Ao tomarmos consciência disso, temos chance de embarcar em uma existência mais verdadeira.”
À semelhança de crises passadas capazes de abalar estruturas, a nova realidade despertou um vigoroso anseio por mudanças — processo que envolve escolhas essencialmente individuais, mas que ecoam coletivamente. As pessoas estão revendo suas opções em toda parte — e no Brasil, com especial intensidade. Um levantamento da consultoria global Oliver Wyman em dez países instala os brasileiros em primeiro lugar quando se trata de estabelecer novas prioridades: 44% afirmam ter repensado o que realmente lhes importa, acima da média geral, de 39%. Não por acaso, o país se encontra entre os mais afetados pelo vírus, tendo passado das 615 000 mortes. “Quando as pessoas sofrem solavancos, elas tendem a questionar o status quo da vida”, afirma Marina Gontijo, diretora da Oliver Wyman Brasil.
Como o brasileiro é, sabidamente, antes de tudo um otimista, a mesma pesquisa mostra que 71% apostam em dias melhores, e daí extraem combustível para a mudança. Depois de tantos meses sofridos, o impulso na direção do amanhã pode vir de dramas pessoais. O vendedor Rodrigo Padilha, 49 anos, deu uma guinada depois de contrair Covid-19 e ficar um mês em coma, internado em UTI. Recuperou a consciência na data de seu aniversário e resolveu virar seu mundo de cabeça para baixo: a rotina pesada de exercícios físicos e o expediente puxado em uma loja de bicicletas deram lugar às aulas de ioga e aromaterapia. Continua vendendo bicicletas, mas dedica parte do tempo a produzir florais de Bach. Ele emagreceu 22 quilos e precisou de fisioterapia para voltar a andar. “Sabemos que não somos eternos, mas estar cara a cara com a morte é como um estalo que nos faz questionar se a vida que levamos faz sentido”, justifica Padilha.
Parece simples, mas não é. Por mais que faça parte do senso comum o entendimento de que momentos de crise sinalizam oportunidades de mudança, é difícil saltar para o desconhecido naqueles momentos extremos em que, de uma hora para outra, o chão parece faltar. “A reação imediata é dar as costas à situação, mas é justamente o desconforto que favorece as guinadas”, enfatiza Paula Peron, professora de psicologia da PUC-SP. A assistente social Rafaela Ferreira, 32 anos, custou a se convencer de que o casamento, de mais de uma década, havia chegado ao fim, mesmo com as diferenças acentuadas e os conflitos acirrados pela intensa convivência obrigatória em pleno lockdown. “Divergíamos em praticamente tudo, uso de máscara, respeito às regras, visão política”, resume. “Vivíamos uma batalha.” A decisão da separação, após um ano de terapia de casal, foi conjunta e, como costuma acontecer, veio acompanhada de frustração e medo. Rafaela conta que conseguiu se recompor quando se abriu ao novo e se jogou nos esportes radicais, como escalada e rapel. “A reviravolta me fez muito bem”, diz. A pandemia, de fato, passou com a força de uma motoniveladora sobre os casamentos. Um estudo da UFRGS aponta que 40% dos casais brasileiros cogitaram se separar, tendência que se reverteu em aumento de 21% nos divórcios no primeiro semestre do ano.
Construir melhores relações familiares é justamente um fator central na agenda de quem saiu do isolamento com uma nova perspectiva de vida. Segundo a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, 51% dos pais de todas as classes sociais se aproximaram dos filhos nos meses de confinamento. Outra pesquisa, esta conduzida pelo governo do Reino Unido, mostrou que o cuidado das famílias com as crianças aumentou 58%. “Antes, cada um tinha seu compromisso, uns estudavam, outros trabalhavam”, diz a psicóloga Ceres Araujo, especialista em relações familiares. “Pais de adolescentes não tinham ideia do que os filhos faziam.” Os efeitos da convivência mais assídua extrapolaram o núcleo familiar e desencadearam mudanças em outras frentes. Segundo o site de aluguel de imóveis QuintoAndar, três de cada quatro brasileiros passaram a ver seus lares de forma diferente, mais voltada para o coletivo e a qualidade, valorizando espaços de lazer, abundância de verde e certa distância dos aglomerados urbanos.
A divisão de tempo ideal entre trabalho e família também se insere no rol da nova visão do mundo: dois terços dos brasileiros acham que as empresas devem ser flexíveis quanto à presença no local de trabalho e afirmam se sentir mais produtivos sem horários rigidamente definidos, aponta um recém-divulgado estudo do Instituto Ipsos. Nos Estados Unidos, a questão ganhou proporções monumentais. Descontentes com salários e condições de trabalho e decididos a chacoalhar sua rotina, milhões estão abandonando seus empregos ou deixando de buscar vaga nas profissões de antes. Só em setembro, mês batizado de “A Grande Demissão”, 4,4 milhões apresentaram pedido de dispensa e um novo nicho, o QuitTok (de quit, sair), já abrange milhares de pessoas que comemoram ter desistido de seus cargos em vídeos no TikTok. A maioria tem entre 30 e 45 anos e uma das explicações para a debandada é a busca por alguma ocupação que traga mais felicidade — conceito inserido na sigla Yolo, de You only live once (só se vive uma vez), que ganhou uma legião de adeptos neste pós-quarentena. Trata-se de uma turma que, mais de olho no presente do que no futuro, abraça a ideia de que relevante mesmo não é ter emprego fixo, casa própria e carro zero, mas sim aproveitar o aqui e o agora da melhor forma possível.
De maneira parecida com o que ocorre atualmente em decorrência da pandemia, outros acontecimentos em escala global alteraram o mundo em aspectos subjetivos, muitas vezes não detectados imediatamente. Ao longo da história, a epidemia de peste negra, a Grande Depressão econômica, a II Guerra Mundial e a queda do muro de Berlim suscitaram debates que redundaram em mudanças perenes nas organizações sociais e econômicas e nas pessoas. “Em muitos casos, crises tão profundas são o ponto de virada na cultura, no comportamento e na estrutura das sociedades”, afirma a historiadora Ana Claudia Aymoré, da Universidade Federal de Alagoas, especialista em pandemias. “No século XIV, por exemplo, a disseminação da peste acelerou o fim da Idade Média e abriu a trilha para o Renascimento.”
O arrasador terremoto que, em 1º de novembro de 1755, engoliu Lisboa e dizimou um terço da população, foi outro desastre de alcance maior do que se previa, vindo a abalar os pilares da sociedade europeia. Pensadores como Voltaire (1694-1778) e Kant (1724-1804) se recusaram a aceitar a ideia muito disseminada de que a tragédia era obra divina e puseram-se a defender o livre-arbítrio como ferramenta para cada um determinar o próprio destino em meio às sombras. “Toda reforma interior e mudança para melhor depende exclusivamente da aplicação do nosso próprio esforço”, escreveria, mais tarde, Kant (veja mais reflexões sobre o assunto no quadro).
Com o incentivo certo, a tendência à mudança envolve até aqueles que estão aferrados ao seu modo de viver. “Boa parte da população só almeja mesmo que o mundo volte a ser o que era antes”, observa Klaus Rabello, filósofo e membro da Kant Gesellschaft da Alemanha. “Mas inclusive entre essa parcela vemos surgir um senso crítico, um afã pelo novo, em que o respeito pelo coletivo, pela natureza e pelo próximo é um valor central.” Não se trata de enxergar o mundo com lentes cor-de-rosa, ou de ver tudo com os olhos da chamada autoajuda, mas de reconhecer que há algo no horizonte que alimenta o anseio por uma existência mais vibrante.
Na década de 80, um estudo clássico do sociólogo americano Ronald Ingleheart fez a associação definitiva entre o exercício pleno da liberdade — sem os freios de uma pandemia, por exemplo — e o aumento da felicidade nas sociedades ocidentais. O trabalho pavimentou cientificamente a ideia de que pessoas mais livres são também mais otimistas, e essa postura diante da vida pesa a favor das grandes transformações. “Temos muito a ganhar ao nutrir o otimismo em tempos difíceis, porque isso pode nos motivar a tomar medidas práticas para virar a página”, diz Raphaël Millière, professor de filosofia da Universidade Columbia.
Virar a página, nesta fase de ajustes e desapego, pode se concretizar em uma travessia radical: a que leva a outro país, outra língua, outra cultura. Estimulado, nesse caso, pelo fator adicional de uma certa desesperança com os rumos do país, o número de brasileiros morando no exterior cresceu 20% nos últimos dois anos. E o êxodo vai aumentar: pesquisa recente da FGV com jovens entre 15 e 29 anos revelou que quase metade pensa em ir embora do Brasil, em busca, acima de tudo, de melhor qualidade de vida. A analista de sistemas Lilian Pettres, de 41 anos, ainda não pensa na diáspora. Segue em Florianópolis, mas priorizando a tranquilidade do corpo e da mente, em viagem cuidadosa. Bem remunerada executiva de vendas de uma empresa de tecnologia, aproveitou o isolamento do trabalho remoto para fazer uma profunda reavaliação de seus valores e resolveu começar do zero, agora no segmento de saúde e bem-estar. “Não há nada mais prazeroso do que melhorar a vida das pessoas”, diz ela, que abriu uma clínica de massagem com aparelhos. Para a turma que saiu da reclusão com uma visão diferente de si e dos outros, o ano que se inicia é um campo aberto a experiências e a uma vida nova. Que todos encontrem a felicidade.
O MUNDO NÃO PARA
O que filósofos de diferentes tempos diziam sobre a necessidade de transformação dos indivíduos
“A única coisa que não muda é que tudo muda.”
Heráclito (540-470 a.C.)
“Uma mudança deixa sempre patamares para uma nova mudança.”
Maquiavel (1469-1527)
“Toda reforma interior e toda mudança para melhor dependem exclusivamente da aplicação do nosso próprio esforço.”
Kant ( 1724-1804)
“Se você pode mudar de ideia, você pode mudar sua vida.”
William James (1842-1910)
Publicado em VEJA de 22 de dezembro de 2021, edição nº 2769