Na revolução de costumes que a pandemia desencadeou pelo mundo, uma das transformações mais notáveis ocorreu no modo como as pessoas se cumprimentam. Tirando as mãos juntas na frente do peito, à moda indiana, e a inclinação de cabeça e torso, típica dos orientais, todos os outros gestos de saudação mais usados foram abolidos em nome da prevenção contra o novo coronavírus. À medida que a vacinação e o conhecimento das situações de contágio avançam, dá para imaginar que um rápido aperto de mão ou um abraço com rostos bem afastados têm chance de reaver seu lugar no encontro entre duas pessoas. Mas e o beijinho no rosto, aquele manancial de partículas despejadas justamente das redondezas da boca, nariz e olhos, as áreas mais críticas da contaminação? Deste, ninguém arrisca, por enquanto, a prever a volta — nem os franceses, seus maiores divulgadores. Em uma pesquisa do Instituto Francês de Opinião Pública feita com a imunização já avançada no país, 78% dos entrevistados se disseram dispostos a dispensar permanentemente la bise, como o gesto é conhecido, ao cumprimentar pessoas que pouco ou nada conhecem. Mais: 50% pretendem evitar beijos na bochecha até na relação com os mais próximos.
Os franceses não inventaram o beijinho como cumprimento, mas foi da França que ele se espalhou pelo mundo. Atribui-se o sucesso de la bise no país à calorosa cultura latina e à tendência francesa de conferir significado aos gestos — ao se beijarem, as duas pessoas se colocam em pé de igualdade e transmitem uma mensagem de sociabilidade e acolhimento. “Há dois tipos de cultura no mundo: a que valoriza o contato físico e a que o inibe. Na França, sempre predominou o apreço pela proximidade”, diz Dominique Picard, especialista em relações sociais da Université Sorbonne Paris Nord. Quer dizer, até a Covid-19 fazer seu estrago e o beijo na bochecha ganhar a pecha de vilão. Mesmo estando 65% dos franceses imunizados, o presidente Emmanuel Macron, beijoqueiro contumaz inclusive de senhoras que não foram criadas assim, como a chanceler alemã Angela Merkel e a ex-primeira-dama americana Melania Trump, se viu soterrado em críticas ao tentar reabilitar o cumprimento beijando (de máscara) dois veteranos da II Guerra Mundial, em uma cerimônia em junho. “Acho que esse gesto não volta tão cedo. Mas sou otimista e confio que vai acabar reaparecendo, afinal o toque é inerente à condição humana e fundamental para o desenvolvimento cognitivo”, anima-se David Le Breton, antropólogo da Universidade de Estrasburgo.
No Brasil, onde chegar por último em um jantar de família impunha o ritual de dar a volta na mesa beijando um por um os presentes, a pandemia extinguiu esse tipo de cumprimento e a rejeição a ele segue firme e forte. Muita gente se declara, inclusive, favorável a sua interdição definitiva, a não ser em ocasiões especiais. “Agora, eu beijo meus filhos e meu marido. E ponto-final”, decreta a funcionária pública Cláudia Teresa Guimarães, 57 anos, do Rio de Janeiro. Na mesma linha, a estudante Ana Clara Lopes, 24 anos, de Campos dos Goytacazes, no interior fluminense, encarou o fim da obrigatoriedade de beijar quem encontrar pela frente como uma espécie de libertação. Fica apenas no soquinho com os conhecidos. “Parei para refletir e me dei conta de que se trata de um excesso de contato físico”, afirma.
A ciência corrobora a tese de que a beijação indiscriminada não é saudável. O beijo permite que gotículas de saliva repousem na face da outra pessoa, facilitando a disseminação de vírus e bactérias — um gesto rápido que abre portas não só para o novo coronavírus, mas para uma série de outros agentes causadores de enfermidades como gripes, herpes, caxumba, catapora e conjuntivite. Edimilson Migowski, professor de doenças infecciosas da UFRJ e presidente do comitê científico de enfrentamento da Covid do estado do Rio, está entre os que acreditam que o beijinho na bochecha sairá de moda por um bom tempo, talvez para sempre. Como as vacinas não são 100% eficazes, diz, a doença permanecerá ativa mesmo em países onde boa parte da população já estiver imunizada, fazendo dos protocolos anti-Covid cuidados duradouros. “Duvido que aquele beijo social volte a ser regra. Ficou deselegante expor o outro ao risco”, aposta Migowski.
Pode até ser que o beijinho suma do mapa — mas os registros da história não apontam nessa direção. A origem documentada do cumprimento usando o rosto — no caso, esfregando narizes — está na Índia: textos em sânscrito datados de 1500 a.C. sugerem essa forma primitiva de saudação. A prática se internacionalizou por volta de 326 a.C., quando o exército de Alexandre, o Grande, ocupou partes da Índia e, seguindo adiante, apresentou o esfrega-narizes a povos do Oriente Médio. O cumprimento, já transmutado em beijo, viria a ganhar espaço e prestígio como ritual afetivo no Império Romano (veja a linha do tempo acima). Coube aos romanos categorizar o gesto, dando nome de saevium à versão amorosa, de osculum nos atos religiosos e de baseum nas manifestações de polidez e cortesia — este, o ponto de partida do beijinho-cumprimento de hoje em dia. À medida que o Império se expandia, os romanos, tal qual missionários do beijo, foram transplantando o costume para os limites de seus domínios. Na França, acredita-se que tenha chegado durante as guerras travadas com os gauleses, povo de origem celta que ocupava boa parte da região. A popularização definitiva se deu quando o beijo no rosto foi abraçado pela Igreja Católica como símbolo do cristianismo.
No período em que a peste bubônica dizimava a população da Europa, a partir de 1300, o beijo na bochecha entrou em recesso devido — então como agora — ao seu potencial de transmissão da doença. O gesto atravessou a Idade Média nas sombras, identificado pela mesma Igreja como ato pecaminoso, símbolo de sensualidade e sujeira. O trauma deixado pela peste negra durou quase 500 anos, mas enfim aconteceu: o beijinho voltou, e justamente na França. Da Revolução Francesa, em 1789, em diante, beijinhos no rosto representavam os três ideais da nascente república: fraternidade, igualdade e liberdade. O liberou geral viria com a rebelião dos jovens, nos anos 1960 — o beijinho deixou o círculo mais íntimo e familiar e ganhou o mundo. Ou melhor, parte dele — os Estados Unidos e a Europa não latina até hoje torcem o nariz. Na virada para o século XXI, as bochechas brasileiras, tal qual as de muitas outras nacionalidades, passavam o dia inteiro recebendo beijos. Isso acabou. Fica a pergunta: até quando?
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2021, edição nº 2754