Meu primeiro diagnóstico de câncer de mama ocorreu em 2004. De lá para cá, foi uma longa jornada, com mais de vinte cirurgias, dez delas no peito, e cinco ciclos de tratamento. Desde o começo, constatei, um tanto sozinha, o preconceito com os pacientes dentro das empresas. Tenho formação em comunicação e psicologia e, um ano após o surgimento da doença, cheguei a concorrer a algumas vagas, passei nas entrevistas, mas acabei barrada no exame médico — isso aconteceu duas vezes seguidas. Percebi, então, que, inúmeras vezes, não há acolhimento. O que existe é isolamento.
Com os anos, a vida muda, e o câncer também pode mudar. Em 2006, me submeti a uma operação para conter uma suspeita de recidiva do tumor. Cheguei a me tratar fora do país, onde, à época, havia melhores condições. Em 2012, o problema voltou: era como se ele tivesse decorado o caminho para reaparecer na mesma mama, ainda que eu tivesse tirado todo o tecido doente antes. Tratei de novo, e isso se repetiu em 2019. Até que, no ano seguinte, em plena pandemia, veio a grande surpresa. Descobrimos uma mutação. No mesmo material extraído para análise, os médicos detectaram dois perfis de células tumorais distintos, com crescimento acelerado e risco de metástase. Parti para a quimioterapia e outros medicamentos… Mas fui salva por Deus, porque procurei o médico antes do prazo estipulado para o retorno do acompanhamento.
Em 2022, suspeitaram novamente que a doença queria avançar para fora da mama, e tive de me submeter a todo o tratamento de novo. Não foi fácil. Os efeitos colaterais vão de problemas intestinais a cardíacos. Mas funcionou. Hoje faço um controle tomando remédios de ação anti-hormonal e de quatro a seis meses repito exames. Nesses anos, descobri que o mais difícil de tudo não é o câncer em si. Ele fere a carne, mas o que fere a alma e me faz chorar é a discriminação. O pior câncer é o preconceito. E não sou eu apenas que digo isso. Convivo há anos com outras pacientes e relatos semelhantes: gente que perde o emprego ou não consegue ser contratada. A doença pode impor mudanças na rotina, mas não diminui nossa capacidade de trabalhar e produzir.
Desde o primeiro ano depois do diagnóstico, tentei tocar nessa ferida, estudando o tema, contatando especialistas e escrevendo artigos para a imprensa. Em 2008, pensando na autoestima tão abalada das pacientes, comecei a montar o Instituto Arte de Viver Bem, elaborando conteúdos para um site e buscando voluntários. Quatro anos depois, alugamos um espaço em São Paulo e inauguramos a Casa da Mulher, que, além de fornecer lenço, peruca e prótese às pacientes, desenvolvia atividades e até capacitação para geração de renda. Só que o governo municipal nunca reconheceu nosso papel na assistência social. Em três anos, não havia condições de manter a casa, mas consegui um ônibus e passamos a fazer um circuito itinerante para levar apoio às mulheres e suas famílias. Até que veio a pandemia… E, em meio às recidivas, tive de sair do projeto, que hoje continua no Norte do país.
Mas eu não paro. Aos 62 anos, continuo ajudando pacientes, dando aconselhamento nas redes sociais, acionando empresas e entidades. Hoje insisto nessa questão do preconceito no mercado de trabalho. Pouco mudou do que eu via há quase vinte anos. Temos muito o que aprender com os países lá fora. Veja só: mandei e-mails a 100 CEOs brasileiros para sensibilizá-los a respeito. Apenas dois me responderam. Precisamos de uma mudança cultural, superando estigmas em diversas esferas, algo parecido com o que vivemos em relação à aids. E de uma mudança estrutural, baseada em leis e políticas públicas e na conscientização genuína dentro das empresas. Sempre fui uma vendedora de sonhos, mas, se as coisas não se transformarem, tem horas que a solução parece ser ir embora do Brasil.
Valéria Baracatt em depoimento a Diogo Sponchiato
Publicado em VEJA de 4 de outubro de 2024, edição nº 2913