A pandemia do novo coronavírus deixará profundas sequelas em todos os setores da sociedade, mas algumas pessoas sofrerão ainda mais: aquelas que abusam das drogas. Nos meses de isolamento social, hospitais de diversas regiões do país testemunharam um triste fenômeno. Segundo levantamento realizado por VEJA, houve um aumento expressivo nos atendimentos de dependentes químicos durante a quarentena. Dados do Ministério da Saúde mostram que, nas redes credenciadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o socorro por uso de alucinógenos cresceu 54% de março a junho, em comparação com o mesmo período do ano passado. Sob qualquer ângulo que se olhe, trata-se de um avanço espantoso. Na história recente, raras foram as vezes que aumentos do tipo foram registrados, o que pegou de surpresa inclusive profissionais de saúde.
Não é só. As ocorrências por uso excessivo de sedativos subiram 50% em idêntico período. A tendência é mundial. Nos Estados Unidos, os casos de overdose avançaram 42% em maio, ante o mesmo mês de 2019. Outro estudo, dessa vez realizado em diversos países, inclusive no Brasil, detectou que o consumo de maconha cresceu 36% no primeiro semestre. Os números, já alarmantes, tendem a ser ainda piores. Segundo Nivio Nascimento, porta-voz do escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes no Brasil, usuários de drogas podem inclusive ter deixado de procurar os serviços de saúde por receio de contaminação.
Diversas razões explicam a disparada do uso de drogas durante a pandemia. A primeira delas é óbvia: a depressão desencadeada pela crise de saúde mais traumática a permear a humanidade em pelo menos um século. A obrigação de ficar recluso por períodos longos, o medo de adoecer — e de morrer, diga-se —, a perda do emprego, a queda da renda e as brutais incertezas sobre o futuro não só causam uma natural angústia como levam muita gente ao desespero. Daí para o desembarque no mundo sombrio das drogas é um caminho fácil e rápido. “Os sentimentos ruins trazidos pelo isolamento certamente podem levar ao aumento da busca por substâncias entorpecentes”, reforça Clarissa Corradi-Webster, professora de psicologia da Universidade de São Paulo e pesquisadora do tema.
A história ensina que, nos momentos de grande aflição, a tendência é sempre essa. Foi assim na crise de 2008 nos Estados Unidos, quando milhões de indivíduos perderam o emprego. À época, as autoridades notaram a intensa procura por químicos que pudessem fazer com que as pessoas esquecessem as dificuldades impostas pelo declínio econômico. Fenômeno idêntico foi observado após os atentados de 11 de setembro de 2001. Segundo um relatório produzido pela Organização Mundial da Saúde, as elevadas taxas de stress associadas a acontecimentos catastróficos, como a pandemia do coronavírus, induzem invariavelmente ao uso abusivo de álcool e drogas e, nos casos mais dramáticos, ao comportamento suicida.
Outro motivo para o aumento explosivo do consumo de drogas nos últimos meses é resultado direto das restrições de circulação. Com muitos grupos de apoio fechados, sem poder realizar suas habituais reuniões, as pessoas que precisam de ajuda não conseguiram encontrar o suporte indispensável, o ombro amigo ou a palavra apaziguadora. “Acompanhamentos terapêuticos foram interrompidos pelo isolamento, o que ampliou para os dependentes a sensação de desamparo”, explica a psicóloga Clarissa Corradi-Webster. Sem esse tipo de auxílio, é de esperar que o consumo de drogas aumente, fazendo crescer o número de dependentes e a quantidade de recaídas de indivíduos em recuperação. É um processo automático.
Foi o que aconteceu com Júlio C.N., um conselheiro terapêutico de 42 anos que vive em São Paulo. Usuário de drogas desde os 16 anos, e com um longo histórico de internações, ele vinha mantendo a sobriedade até a pandemia chegar. Em março passado, a depressão agravou-se e ele não resistiu mais. “Usei 5 gramas de crack na Cracolândia no dia 22”, diz, ressaltando a data exata que o fez retornar ao seu inferno particular. “A recuperação é um processo contínuo. Com a falta de reuniões presenciais, não consegui segurar as pontas.” Para evitar novas recaídas como a de Júlio, alguns grupos ligados aos Narcóticos Anônimos e Alcoólicos Anônimos ampliaram suas ações pela internet. Nem todos os dependentes, porém, conseguem manter a sobriedade apenas fazendo consultas a distância, o que reforça os imensos desafios para atacar o problema em um cenário de pandemia.
Para quem acabou de sair de um período de tratamento, é um tremendo esforço manter-se longe das drogas enquanto o planeta parece ruir. O pequeno empresário Rafael Adão, 36 anos, retornou à vida normal em maio, após três meses de internação em uma clínica especializada. Isolado do mundo real e convivendo apenas com pessoas em situações similares à sua, ele não tinha noção da gravidade do coronavírus nem do que esperava por ele do outro lado dos muros da clínica. “Foi como viver em uma ilha”, diz. Agora, precisa lutar para não ceder ao crack, que o dominou durante boa parte de sua existência.
Como ocorreu com algumas atividades comerciais lícitas, o negócio das drogas também prosperou com o aumento da demanda durante a pandemia. De acordo com o Ministério da Justiça, a quantidade de drogas apreendidas nas fronteiras brasileiras multiplicou-se por doze entre janeiro e junho. “Não me lembro de um evento que tenha tido um impacto tão grande sobre o tráfico e o consumo de drogas como a pandemia do coronavírus”, afirma Eduardo Bettini, coordenador de fronteiras do ministério e que fala do alto de uma longa experiência no ramo. “Esse tipo de mudança no comportamento dos usuários costuma demorar anos ou décadas. Desta vez, foram poucos meses.” O mercado se adaptou rapidamente à crise. No Distrito Federal, para preservar as regras de distanciamento, os traficantes desenvolveram um sistema de drive-thru que permite aos usuários comprar cocaína e maconha sem descer do veículo.
O fechamento de bares e restaurantes também impulsionou o consumo. É o que diz a artesã Diana dos Santos. Seu filho é viciado em crack e cocaína e não quis ficar com ela em casa porque a mãe o obrigou a usar máscara e a adotar outros procedimentos de segurança. O rapaz preferiu morar na rua e sobreviver de restos de comida dos restaurantes. “Como eles estavam fechados, ele recorreu às drogas para compensar a fome.” Uma pena. O consumo de alucinógenos é mais um inesperado efeito colateral da pandemia.
Publicado em VEJA de 19 de agosto de 2020, edição nº 2700