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Frustração psicodélica: bastidores da tentativa de registro do MDMA como medicamento

Veto de agência americana provocou a demissão de 75% dos funcionários de empresa que advoga pelo uso de psicodélicos em saúde mental

Por Fabricio Pamplona, para o The Conversation*
12 set 2024, 08h19
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  • No último mês, o FDA (órgão do governo norte-americano que faz o controle de alimentos e medicamentos), analisou o pedido de registro do MDMA — comumente associado ao Ecstasy — para tratamento de estresse pós-traumático. O resultado foi um banho de água fria nos entusiastas do uso de psicodélicos no tratamento de problemas de saúde mental.

    Desconfiança nos métodos dos estudos apresentados, associação nas entrelinhas da empresa responsável pelos estudos a uma espécie de “culto” e até um escândalo envolvendo abuso de uma paciente parecem estar por trás da negativa do FDA. Mas os verdadeiros motivos podem ser ainda mais complexos e desafiadores.

    Um coquetel de motivos

    Apesar de o registro ser bastante aguardado, quem acompanhava o processo de perto não se surpreendeu com a negação do pedido. A resposta do FDA veio depois de um parecer inicial de um comitê assessor do FDA, do Institute for Clinical and Economical Review (ICER), que havia votado contra o registro do MDMA por um retumbante 14 x 1.

    Vale ressaltar que a visão do FDA não é consensual: um comitê europeu concluiu que o uso terapêutico do MDMA para a mesma finalidade é eficaz e seguro.

    A decisão do FDA alega que as evidências foram insuficientes, para a infelicidade da Lykos Therapeutics. A empresa é uma spin off da organização não governamental sem fins lucrativos Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies (MAPS), que há mais de 30 anos advoga pelo uso de psicodélicos como ferramentas terapêuticas em saúde mental.

    As consequências da negação do FDA foram desastrosas, com o anúncio da demissão de 75% dos funcionários da Lykos e a saída do fundador da MAPS do conselho da empresa.

    Até onde se sabe, os motivos para a negação do registro envolvem suposta eficácia “insuficiente” do MDMA, dificuldade com o “blinding” da experiência (que é o processo para reduzir os vieses da pesquisa clínica), limitações no levantamento de evidências de segurança (eventos adversos e risco de causar dependência), falta de uniformidade na aplicação da psicoterapia e, de carona com isso tudo, um escândalo envolvendo abuso por uma única dupla de terapeutas que participaram do estudo. É bastante para se absorver, e de fato há muita especulação, já que o conteúdo da carta de negação do registro não é público.

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    A repercussão está sendo bem séria, e a credibilidade do estudo foi tão afetada que três artigos produzidos ao longo do programa de desenvolvimento clínico foram retratados. Ou seja, as evidências clínicas dos estudos sobre MDMA foram consideradas “indignas” de constarem no roll da literatura científica mundial. Todos os artigos haviam sido publicados na Psychopharmacology, um periódico bastante tradicional da área.

    Aparentemente, o X da questão foi o caso de abuso, divulgado na imprensa internacional. De fato, no texto da retração há referência à quebra de privacidade dos pacientes. Sem entrar no mérito do quão horrendo é um abuso de paciente nesta condição vulnerável e ainda sob o termo de consentimento de uma pesquisa clínica, ainda assim acho que a pesquisa como um todo não pode ser invalidada.

    Não acredito que seja justo realizar uma generalização se baseando exclusivamente em uma falha ética — ainda que grave — de uma dupla de terapeutas com uma única paciente, sem qualquer indicativo de que tenha havido um problema sistemático de protocolo, ou má prática com os demais casos avaliados. É triste, é grave, mas não invalida o dado clínico como um todo.

    A difícil relação com o componente da psicoterapia

    Na prática, contudo, a discussão é mais ampla e profunda. O principal ponto aqui é uma espécie de dogma para a MAPS: a questão de que os psicodélicos (neste caso em especial, o MDMA), devem ser tratados como um componente maior dentro de uma modalidade terapêutica conhecida como “terapia assistida por psicodélicos”.

    Resumindo, ela parte da ideia de que os psicodélicos por si só não seriam necessariamente curativos, mas que dependem de uma condução positiva da experiência, que poderia ser proporcionada por um terapeuta experiente e bem treinado.

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    Esta visão é provavelmente uma adaptação para o contexto terapêutico ocidental das práticas xamânicas, em que as substâncias utilizadas nos rituais são um meio e não o fim. Ou seja, o curador afinal é o xamã, ou melhor dizendo, uma interação entre estes fatores.

    A MAPS não abre mão desta visão, que ressoa em diversas outras entidades e especialista da área, como o Instituto Phaneros no Brasil, que também vem encontrando dificuldades para realizar suas pesquisas no país, aparentemente por resistência da agência regulatória ao modelo de atuação, semelhante ao do MAPS, com quem já colaborou nas fases preliminares dessa pesquisa (Fase 2), que incluiu pacientes brasileiros, conforme publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria.

    Acredito que por trás disso tudo esteja um detalhe importante: a dificuldade da agência regulatória em lidar com o conceito de que a terapia seja parte indissociável do efeito farmacoterapêutico. Ou seja, a ideia de que a substância faz efeito de acordo com a experiência que o indivíduo tem quando está sob o efeito.

    E, pelo jeito, é isso mesmo que se passa. Aliás, talvez a grande potência dos psicodélicos seja justamente essa: serem um grande catalisador das experiências vividas, fazendo jorrar neurotrofinas (proteínas que atuam no desenvolvimento e sobrevivência dos neurônios) no cérebro dos pacientes, de modo a induzir uma intensa neuroplasticidade, que é a capacidade de adaptação do Sistema Nervoso Central em resposta às alterações do ambiente.

    Em uma revisão sobre o tema, o neurocientista Eduardo Schenberg — meu amigo de longa data, fundador do Phaneros e pesquisador da psicoterapia assistida por psicodélicos há mais de uma década — demonstra a variedade existente entre os diversos protocolos terapêuticos, que incluem sessões de psicoterapia antes (para preparação) e após as sessões (para realizar a integração das experiências).

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    Ou seja, realizar tratamento com psicodélicos é algo complexo e exige muito mais do que simplesmente dar a substância para um indivíduo e deixá-lo “ficar doidão” em paz, como alguns poderiam pensar.

    A experiência clínica acumulada mostra diferentes exemplos de protocolos utilizados, inclusive com diferentes substâncias. Por exemplo, nesta revisão é mencionado que a ketamina (anestésico dissociativo com efeito psicodélico, cujo uso é autorizado no Brasil e em diversos outros países) pode ser efetiva de 1 a 12 sessões, enquanto há relatos de eficácia do MDMA com apenas 3 sessões, LSD e psilocibina com apenas duas e a ibogaína podendo ser efetiva com uma única sessão.

    Uma metáfora incrível para o tema seria uma espécie de “cirurgia psiquiátrica”, ou seja, uma intervenção pontual, intensa e tão significante que pode ter efeitos persistentes. Este modo de atuar é radicalmente diferente do que temos, por exemplo, para um medicamento antidepressivo, que precisa ser tomado cronicamente por um longo período de tempo. No caso dos antidepressivos, a psicoterapia também é recomendada para os pacientes, mas não é considerada de forma alguma associada aos efeitos terapêuticos do medicamento.

    Existem guias estruturados de comportamentos e condutas adequadas para a psicoterapia assistida por psicodélicos, mas o problema é que não há exatamente uma “padronização” ou um consenso de que tipo de terapia deve ser feita. Do ponto de vista regulatório, o pano de fundo é que as agências estão acostumadas a avaliar e registrar fármacos (substâncias) e não procedimentos associados.

    Ainda que algumas substâncias inerentemente sejam utilizadas em contextos específicos (ex: substância de uso hospitalar), atrelar o uso de uma determinada substância a um protocolo terapêutico único está um pouco fora do que as agências costumam fazer. Isso vale para o FDA, mas certamente não é exclusivo dessa agência regulatória.

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    Caminhos possíveis

    Existem agora três desdobramentos possíveis para a Lykos / MAPS, considerando que eles continuem a empreitada após esse resultado negativo. O FDA pode aceitar o recurso da empresa e considerar o MDMA seguro e eficaz (talvez com algumas ressalvas); a empresa pode aceitar realizar um novo estudo, com maior padronização no componente de terapia; ou ela pode realizar um novo estudo, mudando a abordagem (desistindo de propor a terapia “combinada” e partindo para a tentativa do registro do MDMA como substância, semelhante a qualquer medicamento).

    Imagino que a empresa vá seguir o caminho de tentar um registro convencional, simplesmente mostrando que o MDMA é seguro e — quiçá — eficaz, mesmo na ausência de terapia associada. E talvez não seja mesmo uma prerrogativa da empresa de decidir como a substância será utilizadas pelos profissionais.

    Ainda que conceitualmente eu considere que a experiência vivida sob o efeito dos psicodélicos seja uma parte essencial da transformação que eles promovem, entendo como razoável a ideia de que a aprovação de um medicamento seja pautada basicamente na eficácia e segurança do seu uso, em uma determinada faixa de dose.

    A maneira como o medicamento será utilizado, os protocolos adequados a cada indivíduo e patologia serão definidos pela prática médica, assim como acontece com a maioria dos outros medicamentos. Tipicamente, isso é tarefa dos conselhos profissionais e das clinical guidelines, não das agências regulatórias.

    Contudo, dada a natureza das substâncias, um estudo exclusivamente com administração de substância sem intervenção terapêutica pode simplesmente não funcionar, e aí temos uma situação impossível de se resolver.

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    Às vezes me questiono se não seria a hora de “retroceder” ao uso original ligado às tradições ancestrais e esquecer por um tempo a ideia de ter psicodélicos comercializados em farmácia. Ou será que a vitória será do pragmatismo biomédico, tentando reduzir os efeitos somente à substância para que enfim seu uso terapêutico seja disseminado e aí se compreenda os melhores protocolos clínicos a posteriori?

    O momento é de reflexão, e quem perde neste momento são os pacientes que terão que esperar mais, justamente em um momento tão frágil da saúde mental em todo o planeta.

    * Fabricio Pamplona é doutor em Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

    Artigo publicado originalmente no The Conversation

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