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Eles não são apenas números: o drama das vítimas brasileiras da Covid-19

As estatísticas frias não mostram o sofrimento dos atingidos pela 'gripezinha', e fica cada vez mais claro que o vírus não tira a vida só dos mais velhos

Por Eduardo Gonçalves Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Mariana Zylberkan, Sofia Cerqueira, Cássio Bruno Atualizado em 4 jun 2024, 15h08 - Publicado em 3 abr 2020, 06h00
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  • “Os fatos são coisas teimosas e, quaisquer que sejam os nossos desejos, as nossas inclinações ou os ditames da nossa paixão, eles não podem alterar o estado dos fatos e as evidências.” A frase do ex-presidente americano John Adams (1735-1826), um dos founding fathers dos Estados Unidos, encaixa-se na atual realidade de pandemia. A despeito de discursos irresponsáveis que tentam minimizar o problema (nessa categoria, o presidente Bolsonaro vem sendo considerado pela imprensa internacional o líder global do negacionismo), a doença se alastra pelo mundo com velocidade impressionante e começa também a chegar com força ao Brasil. Cemitérios como o da Vila Formosa, em São Paulo, passaram a registrar diariamente cerca de trinta enterros por suspeita do vírus. Nos últimos dias, o país quase atingiu a marca de 300 mortes, o que nos coloca entre as quinze nações mais afetadas. A Covid-19 tem se mostrado uma ameaça até para pessoas fora dos chamados grupos de risco. Na China, onde as informações oficiais garantem que o pior já ficou para trás, 18% dos mortos tinham entre 20 e 59 anos. Até o momento, o índice no Brasil é de 11%, mas é possível que essa proporção cresça nas próximas semanas, pois há um sério problema por aqui de subnotificação e só agora médicos começam a compreender melhor as características do vírus.

    O que explica o fato de o novo coronavírus ceifar, em poucos dias, a vida de vários adolescentes na Europa e, no Brasil, a de jovens como Matheus Acioli, confeiteiro que morreu aos 23 anos no último dia 31 (veja esse e outros casos ao longo da reportagem)? “Como é uma doença nova, ainda faltam conhecimento e aperfeiçoamento dos protocolos adotados pelas equipes, o que aumenta o grau de vulnerabilidade das nossas UTIs”, afirma a infectologista Raquel Muarrek, da Rede D’Or. Estilo de vida também é uma variável com potencial para influenciar na resistência ao vírus. Má alimentação, tabagismo e ausência de rotina de exercícios podem, dessa forma, ter uma relação com mortes precoces. “Uma pessoa melhor fisicamente tem mais chances de aguentar o oitavo e o nono dias da doença, que são os mais críticos”, afirma Raquel Muarrek. “A possibilidade de os jovens evoluírem para casos mais graves é menor, mas não quer dizer que não terão complicações”, reforça Eliseu Waldman, professor do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. “É um vírus silencioso que chega devastando”, completa o presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia, Sergio Cimerman.

    A cada dia se conhece um detalhe da doença. Médicos brasileiros passaram a verificar que dor abdominal e diarreia também podem ser sintomas dela. Além disso, como qualquer vírus, a Covid-19 sofre mutações. Na China, foram identificadas duas famílias de vírus diferentes, a mais fatal delas a da região de Wuhan, onde a pandemia se iniciou. No Brasil, ainda é cedo para dizer se ele é mais ou se é menos agressivo que em outros países. O fato é que, sabendo que os jovens também são suscetíveis à enfermidade, a tese do isolamento parcial para confinar apenas os idosos, como Bolsonaro defende, cai por terra. Fora isso, no Brasil, um em cada quatro adultos é hipertenso — a condição preexistente que mais agrava o quadro de coronavírus. Diante dos fatos, o presidente acertadamente mudou o discurso negacionista e passou a dizer que “toda vida importa”. Espera-se que não volte atrás. As estatísticas frias sobre a evolução da Covid-19 não revelam a extensão do drama das vítimas. Elas não são apenas números. E, definitivamente, não estamos combatendo uma simples “gripezinha”.


    ERIKA FERREIRA
    39 ANOS, NITERÓI (RJ)

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    (Ricardo Borges/.)
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    A ficha até agora não caiu para Sylvio Moura (foto). No sábado 28, sua mulher, Erika Ferreira, atriz e diretora de teatro, morreu em Niterói (RJ). Casado com ela havia dez anos, Moura, 36, também ator, jamais imaginaria que aqueles sintomas que tinham um “jeitão de gripe” acabariam interrompendo a vida da esposa de uma hora para outra. “Quando me despedi ao deixá-la no hospital, eu disse: ‘Até amanhã, amor’. Mas não houve amanhã.” Erika era diabética e teve o quadro clássico da Covid-19: febre, tosse seca, falta de ar, dor de garganta, perda de paladar e intenso incômodo no peito. Foi entubada e internada na ala dedicada a pacientes com o vírus. Com os rins funcionando mal, passou por hemodiálise e reagiu bem. Houve ali um fio de esperança. Mas Erika não resistiu. “O sumiço dela, dessa maneira, foi assustador”, desabafa o marido, que tem sintomas leves da doença e está em casa.


    MAURÍCIO SUZUKI
    26 ANOS, SÃO PAULO (SP)

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    (Egberto Nogueira/Ímãfotogaleria/.)

    Graduado em direito pelo Mackenzie, Mau, como era conhecido, obteve a carteira da OAB antes de se formar, tinha uma boa cartela de clientes em um escritório renomado e sonhava ser juiz. Até o dia 19 trabalhava em home office, quando enviou um aviso a um amigo por áudio. “Vou tomar um banho aqui para ver se a febre baixa”, disse, enquanto tinha uma crise de tosse seca. Ele já havia ido ao hospital uma vez e o mandaram de volta para casa, alegando tratar-se de uma “gripe normal”. Precisou voltar mais duas vezes ao local. Na última, foi levado à UTI. No sábado 28, não resistiu, vítima da Covid-19. “Disseram que, como era jovem e saudável, essa complicação não era esperada. Foi muito rápido”, conta Simone Suzuki, sua irmã. Mau corria 15 quilômetros por semana, era generoso e uma espécie de tutor dos novatos do escritório. “Ele me ensinou praticamente tudo o que eu sei”, testemunha o amigo Bruno Maia (foto).

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    MANOEL MESSIAS FREITAS FILHO
    62 ANOS, SÃO PAULO (SP)

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    (ACERVO PESSOAL/.)

    O porteiro aposentado Manoel Messias Freitas Filho andava preocupado com a doença. No início de março, ainda no começo da escalada de casos em São Paulo, mandou uma mensagem à enteada Daiana Campos pedindo que ela tomasse cuidado com o vírus. Dias depois, foi internado para tratar uma trombose, adquirida durante os longos anos em que trabalhou sentado. Enquanto se recuperava em casa, passou a ter febre e falta de ar. Voltou ao mesmo hospital e de lá não saiu mais. Faleceu no dia 16 e se tornou a primeira vítima do coronavírus no país. A família chorava sua morte quando, uma das irmãs, Nealia Freitas, também infectada pelo vírus, morreu. Na segunda-feira 30, foi a vez de o pai, Manoel Messias Freitas, 83, perder a vida em decorrência da Covid-19. “Uma família inteira foi destroçada em menos de quinze dias”, conta Daiana, que não teve a chance de se despedir do padrasto. “Não houve velório e faltou gente para segurar as alças do caixão no enterro.”


    ROBSON DE SOUZA LOPES
    43 ANOS, MANAUS (AM)

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    (ACERVO PESSOAL/.)

    A agenda do músico Tio Binho era intensa. Dia sim, dia não, apresentava-se nos bailes, formaturas, igrejas e casamentos de Manaus. A rotina só foi interrompida pela pandemia, que fez a cidade cancelar eventos com aglomeração. Infelizmente, a doença não afetou só seus shows. No dia 20, ele sentiu falta de ar e foi ao hospital. Dez dias depois, sofreu quatro paradas cardíacas e não resistiu. A única comorbidade que tinha era asma. Tecladista, tocou com artistas famosos na região. Cinco anos atrás, decidiu fundar a própria banda, a Joy (alegria, em inglês). “Era o bordão dele: ‘Nós é Joy’ ”, relembra a sobrinha Deborah Azevedo, cantora do grupo. “Ele tocou nos meus aniversários, no meu noivado, no meu casamento e na apresentação
    da minha filha na igreja. E fez isso com os 27 sobrinhos”, relata. Descrito como pai amoroso e marido apaixonado, Binho deixou dois filhos. Sua morte foi lamentada por artistas amazonenses e pela Secretaria de Estado da Cultura.


    MAGALI GARCIA
    46 ANOS, SÃO PAULO (SP)

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    (ACERVO PESSOAL/.)
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    A sargento Magali Garcia foi a primeira PM do país a morrer da doença. O trabalho de policial não pôde parar durante a quarentena. Até o dia 20, ela cumpria normalmente sua jornada quando passou a sentir leves sintomas de gripe, como falta de ar e cansaço. Magali atuava no Copom, o Centro de Operações da Polícia Militar, que recebe as denúncias das pessoas por telefone e as repassa aos agentes na rua. Foi logo colocada em quarentena e, no dia 27, entubada na UTI. Três dias depois, morreu. Segundo o tenente-coronel Emerson Massera, seu colega de trabalho, Magali era saudável, proativa e dedicada — em maio, completaria 25 anos na PM. Até então, nunca havia tido problemas de saúde, apesar de ser ex-fumante. “Ela era muito querida e certamente deixará saudades”, diz Massera. Casada com um capitão, Magali tinha dois filhos. “Mais uma guerreira no batalhão do céu”, escreveram os amigos nas redes sociais.


    ANTÔNIO BRITO DOS SANTOS
    49 ANOS, SÃO PAULO (SP)

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    (ACERVO PESSOAL/.)

    Mesmo com febre e tosse, Antônio Brito dos Santos foi trabalhar em um estacionamento na região central de São Paulo, um dos muitos empregos que teve como manobrista desde que viera de sua cidade natal, Amargosa (BA), vinte anos atrás. Dias após apresentar os primeiros sintomas, procurou atendimento médico, foi internado já em estado grave e faleceu horas depois, em 21 de março. A confirmação de Covid-19 veio após o enterro em caixão lacrado. Seu filho, Ricardo Abrantes Brito, conta que a família nunca imaginou que ele pudesse ter contraído o vírus porque sua vida era de casa para o trabalho, onde cobria o período noturno. “Era uma pessoa bem reservada”, diz sobre o pai, que se tornou a primeira vítima fatal do coronavírus no país com menos de 60 anos.

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    MATHEUS ACIOLE
    23 ANOS, NATAL (RN)

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    (ACERVO PESSOAL/.)

    Confeiteiro de mão-cheia, Matheus Aciole nem viu as embalagens personalizadas de ovos de Páscoa que encomendara. Como em todos os anos, nesta época, ele se preparava para atender a clientela de uma loja de bolos onde trabalhava com a mãe, Elione Aciole, de 55 anos. Dias depois de ir a uma festa de formatura, começou a ter tosse seca e febre. Ficou de resguardo em casa, mas, quando a temperatura do corpo subiu, a mãe achou melhor levá-lo ao hospital. Passou cinco dias internado, foi entubado, porém o quadro evoluiu para insuficiência renal — morreu na terça-feira 31 e se tornou a vítima mais nova do coronavírus no país. “Meu filho não tinha nenhum problema de saúde. Sempre foi gordo, dizia que a boca era para comer, mas isso nunca o atrapalhou”, afirma a mãe.


    NABIL KARDOUS
    65 ANOS, SÃO PAULO

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    (Egberto Nogueira/Ímãfotogaleria/.)

    Pouco antes de adoecer, o advogado Nabil Kardous recebeu em casa sua afilhada, que mora no Rio de Janeiro. Filha de uma ex-empregada doméstica, a menina sempre o chamou de avô. Dias depois de se despedir da visita, ele começou a sentir falta de ar e febre. Como estava em tratamento para curar uma pneumonia que já se arrastava fazia bastante tempo, pensou que não passava de mais uma recaída. Decidiu ir ao hospital quando percebeu que a febre alta não cedia. “Ele chegou a dormir no pronto-socorro naquela noite, e não acordou mais”, conta Paul Kardous (foto), seu irmão. A família não teve a oportunidade de se espedir, já que ele ficou isolado por três dias no hospital e o velório durou quinze minutos, diante do risco de contaminação pelo coronavírus. O advogado, nascido no Cairo, capital do Egito, fez carreira no direito tributário e atuava no escritório do empresário e investidor Naji Nahas, a quem representava em processos judiciais ligados à área imobiliária.

    Publicado em VEJA de 8 de abril de 2020, edição nº 2681

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