Ao longo dos últimos três anos, desde a eclosão da pandemia de Covid-19, o mundo viveu uma gangorra incômoda — aos extraordinários e rapidíssimos saltos da ciência para o desenvolvimento de vacinas contra o novo coronavírus somou-se um movimento contrário, de negacionistas incapazes de enxergar a relevância da imunização, transformando a medicina em ideologia. Felizmente, a sensatez venceu. Cerca de 64% da população global recebeu ao menos duas doses de imunizantes — um dado muito bom, embora ainda distante dos 70% estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o patamar ideal. “A humanidade nunca se uniu tanto para pensar em uma vacina, mas tivemos uma infodemia, a pandemia de desinformação”, diz Isabella Ballalai, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações. “Houve, como decorrência, mais interesse, mas também mais medo.”
A imunização, conquista da civilização, era para ser tratada como evento corriqueiro — e assim era até que a atual pandemia coincidisse com a polarização política global. E então, como resposta a quem fecha os olhos para os saltos dados em laboratório, a divulgação de novas substâncias protetoras passaram a ser celebradas com merecido estardalhaço. É como se houvesse uma revolta da vacina.
Há uma leva de substâncias em lançamento ou fase final de ensaios clínicos. No Brasil, nas últimas duas semanas, ocorreu a aprovação da vacina da farmacêutica japonesa Takeda contra a dengue para amplo público e a versão mais potente contra o HPV, o papilomavírus humano, relacionado a casos de câncer de colo de útero, garganta e ânus, além da de gripe para pessoas com mais de 60 anos. O Instituto Butantan busca mais proteção para Influenza A e B. Em breve, serão anunciadas doses para chicungunha (veja detalhes no quadro abaixo). A vasta cartela de imunizantes é indício de haver uma engrenagem em andamento. Ela é fundamental, ao alimentar as campanhas de vacinação.
Houve, nos últimos dez anos, uma queda da cobertura vacinal, o índice que mede a porcentagem da população devidamente protegida. É fenômeno que chegou também ao Brasil, infelizmente, e precisa ser revertido com urgência. Em 2022, depois de tanta grita, deu-se alguma melhora nos índices de alcance, após considerável recuo. Desde 1973, com a criação do Programa Nacional de Imunizações (PNI), o país ganhou respeito internacional ao atingir metas alvissareiras de vacinação, a ponto de ter conseguido erradicar a poliomielite, a rubéola congênita e o sarampo. Hoje, a título de exemplo, 76% da população tem no organismo defesas contra a pólio — em 2013, 100% estava vacinada (acompanhe a curva de outras vacinas no quadro). As picadinhas e as gotas — sabem as famílias de todas as classes sociais — fazem parte do cotidiano dos brasileiros, como a terça-feira gorda de Carnaval, a noite de São João e a família reunida no Natal. De geração em geração, a ida ao posto de saúde virou hábito atrelado ao choro infantil que é sinônimo de bem-estar. Não deveria, portanto, ser notícia. Mas é, e cabe agora incentivar com vigor a retomada.
É um desafio, por exemplo, fazer com que os pais levem seus pré-adolescentes para receber as doses de vacina contra o HPV. Em 2019, 87% das meninas de 9 a 14 anos de idade receberam a primeira dose da vacina. No ano passado, caiu para 76%. Entre os meninos, o índice despencou de 61% para 52% nesse período. É preocupante, sobretudo porque a vacina é oferecida gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde, o SUS. Na lida com a defasagem — o ideal é que a adesão seja de 95% — é relevante também o apoio da iniciativa privada. Na semana passada, a farmacêutica americana MSD pôs na rede particular, em clínicas, a Gardasil-9, opção turbinada do imunizante contra o HPV, que protege de nove subtipos do vírus. “O Brasil tem história, estrutura e confiança para aumentar a vacinação”, disse a VEJA Rob Davis, CEO global da companhia, que esteve no país para o lançamento e a inauguração do Museu da Vacina, dentro do Butantan, em São Paulo.
A existência de um museu, aliás, é outra evidência da relevância de entender como chegamos até aqui, em avanços extraordinários, apesar dos percalços. Houve tropeções recentes como as manifestações de anti-vaxxers que proliferaram na Europa, especialmente na Inglaterra e na França, e nos Estados Unidos na temporada de Donald Trump na Casa Branca. É crucial também relembrar um episódio como a Revolta da Vacina, em 1904, no Rio, em cinco dias de fúria contra a imunização obrigatória para combater a varíola e a entrada de profissionais de saúde nas casas para eliminar focos de Aedes aegypti.
O vaivém no tempo, entre o desdém feito de estultices e a celebração do conhecimento, ilumina uma certeza — a importância da vacina para a humanidade. A OMS estima que a imunização evite 3 milhões de mortes ao ano. “A vacinação está entre os grandes recursos para evitar mortes, ao lado do saneamento básico e da oferta de água potável”, diz Claudia Cavalcante França Valente, da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia. É por isso que os pesquisadores não se abatem. É o caso de sempre lembrar de uma conhecida frase do sanitarista e epidemiologista Oswaldo Cruz, o cientista convocado pelo presidente Rodrigues Alves no início do século XX para dar conta das doenças na então Capital Federal: “O saber contra a ignorância, a saúde contra a doença, a vida contra a morte… Mil reflexos da batalha permanente em que todos estamos envolvidos”.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2023, edição nº 2833