Falta de força de vontade, de autocontrole. São muitas as fragilidades atribuídas ao indivíduo obeso. Infelizmente, até hoje prevalece o estigma de que a obesidade seria consequência de um comportamento preguiçoso, quando, na verdade, se trata de uma doença complexa contra a qual não há caminhos únicos. Na esteira da desinformação, quem mais sofre é o paciente, que se vê perdido e incapaz de compreender a própria condição. O fardo é maior para os que necessitam de remédios, com facilidade tachados de dependentes, fracos ou outras bobagens do gênero. Na semana passada, essa parcela de pacientes foi surpreendida com a notícia de que alguns medicamentos não estarão mais disponíveis no mercado. Isso graças a uma resolução do Supremo Tribunal Federal tomada na quinta-feira 14, derrubando uma lei que autorizava a produção, venda e consumo dos anfetamínicos anfepramona, femproporex e mazindol. Na prática, o tribunal voltou a deixar a decisão a cargo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que em 2011 já havia proibido a utilização das medicações.
Só ficou de fora da proibição a sibutramina, o emagrecedor com registro mais antigo no país — desde março de 1998 — e o único disponível no Sistema Único de Saúde. Criado como antidepressivo, ele aumenta a sensação de saciedade. Embora seja a primeira escolha quando é preciso usar medicamento, é contraindicado para quem tem doença cardiovascular ou faz acompanhamento psiquiátrico. Existem também pessoas que não respondem à droga. “Agora, com a proibição dos outros remédios, há pacientes que podem ficar sem medicamento nenhum”, diz Maria Edna de Melo, presidente do Departamento de Obesidade da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM).
A situação ocorreria porque, segundo a especialista, os outros dois fármacos para emagrecer liberados pela Anvisa, a liraglutida (retarda o esvaziamento gástrico, aumentando a saciedade) e o orlistat (impede a absorção de gordura), são caros e dificilmente serão disponibilizados pelo SUS. Uma caixa de liraglutida custa em média 450 reais e a do orlistat, 150 reais. A Anvisa, porém, mantém a posição de que os riscos dos anfetamínicos superariam os benefícios. Entre os perigos, estariam a possibilidade de desenvolvimento de dependência física e psíquica, ansiedade, taquicardia, hipertensão e problemas cardiovasculares. A agência também afirma que não existem evidências de eficácia a longo prazo.
As questões em torno da anfetamina são antigas. Droga sintética que estimula a atividade do sistema nervoso central, com indicações médicas para o transtorno do déficit de atenção e narcolepsia — distúrbio que causa sonolência excessiva —, foi preparada em laboratório pela primeira vez em 1887, pelo químico romeno Lazár Edeleanu, na Universidade de Berlim, na Alemanha. Utilizada durante a II Guerra Mundial, tinha a finalidade de manter os soldados acordados e ativos. Naquela época, observou-se que ela reduzia a fome e a fadiga. Mais tarde, quando se comprovou que realmente inibia o apetite, passou a ser usada por pessoas que queriam perder peso. Até hoje, é o remédio para emagrecer mais popular do planeta. Particularmente no Brasil, porém, ela se tornou um problema. Em 2007, o país apareceu como o maior consumidor de anorexígenos — medicamentos moderadores de apetite à base de anfetamina — do mundo em relatório anual da Organização das Nações Unidas, com ingestão de cerca de 12,5 doses diárias, contra 11,8 na Argentina, 9,8 na Coreia do Sul e 4,9 nos Estados Unidos.
No ano seguinte, surgiu no levantamento do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crimes como o terceiro maior consumidor de anfetaminas do globo. “Representa um padrão preocupante que indica abuso no número de receitas”, dizia o documento. Hoje, sabe-se, o problema envolvendo as anfetaminas por aqui é seu uso indiscriminado e excessivo. “Existe muita venda ilegal e prescrição abusiva com altas doses receitadas por médicos que não são da área”, diz a endocrinologista Maria Edna de Melo, da SBEM. O resultado são pacientes com agitação, irritabilidade acentuada, algo que não aconteceria com a dose correta. “Esses remédios estão há décadas no mercado e não se tem registro de efeitos colaterais graves quando usados adequadamente”, afirma.
A médica toca no ponto fundamental que determina se a utilização de remédios para perder peso será efetiva ou não. Assim como em todo tratamento, é preciso saber a quem, quais e como as medicações devem ser empregadas. Nas diretrizes brasileiras de tratamento, a indicação leva em conta o IMC (índice de massa corpórea) acima de 30 kg/m² e a presença de doenças associadas à obesidade, como triglicérides aumentado, gordura no fígado e apneia do sono. Entre 30 e 25, faixa de sobrepeso, recomendam-se mudanças de estilo de vida com dietas, atividade física e hábitos saudáveis.
Nos Estados Unidos, onde é permitida a venda de anfetaminas para emagrecimento, o Instituto Nacional de Saúde preconiza que indivíduos com IMC 27 podem ser medicados caso apresentem enfermidades correlatas. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 96 milhões de brasileiros apresentam IMC maior do que 25 kg/m², o que equivale a cerca de 60,3% da população adulta do país. É muita gente com a saúde sob ameaça, sabendo-se que o excesso de peso é fator de risco para infartos, acidente vascular cerebral e alguns tipos de câncer. Portanto, como qualquer outra doença, a obesidade precisa ser enfrentada adequadamente. Se tiver de ser com remédio, que seja.
Publicado em VEJA de 27 de outubro de 2021, edição nº 2761