Para crianças autistas, atividades de lazer corriqueiras como torcer pelo time de coração em um estádio de futebol, ir ao cinema ou visitar um parque de diversões podem ser extremamente estressantes — quando não angustiantes. Uma das características do autismo é o desconforto com os ruídos, atalho para reações extremadas. Já em 1943, nos primeiros estudos dedicados ao transtorno, o psiquiatra austríaco Leo Kanner (1894-1981) fazia referência a Donald, um garoto que ficava “completamente petrificado perante o aspirador”, e a Richard, Barbara e Virginia, que “ignoravam o som, a ponto de outras pessoas chegarem a questionar se não seriam surdos”. A imagem estereotipada da condição que, só no Brasil, segundo estimativas, alcança 2 milhões de meninos e meninas é a de desespero, de ouvidos tapados com as mãos. Nem sempre é assim, claro, mas o lugar-comum acabou por excluir os portadores do problema.
Na era da inclusão, contudo, há um interessante movimento de atração dos autistas para o cotidiano. No fim do ano passado, a Arena Corinthians inaugurou o espaço TEA (sigla para “transtorno do espectro autista”). Trata-se de uma sala adaptada, protegida por vidros espessos, que reduzem em 90% o barulho externo. Nela, ainda são disponibilizados fones de ouvido para abafar os ruídos. A luz é baixa. Televisores exibem programação infantil, e existem sofás para os pais. Os minitorcedores podem assistir à partida da arquibancada e utilizar a sala apenas em caso de crise — ou, se preferirem, ali permanecer o tempo todo. “É a terceira vez que trago meu filho ao estádio, mas é a primeira vez que ele comemora um gol”, disse a VEJA o gerente de projetos Robson Aparecido da Silva, de 35 anos, que acompanhou a vitória contra o Santos, por 2 a 0, ao lado de Henrique, de 6 anos. “Nas outras ocasiões, no meio da torcida, ele fechava os olhos e tapava os ouvidos por causa do barulho.” Para Caio Campos, superintendente de marketing do Corinthians, a ideia nasceu da falta de opções. “Felizmente conseguimos nos adaptar”, afirma ele.
Adaptação é o nome do jogo. Em São Paulo, uma lei sancionada pelo prefeito Bruno Covas determinou que, a partir de abril, todas as salas de cinema da cidade ofereçam ao menos uma sessão mensal com luzes atenuadas e som mais baixo durante o filme, e sem trailers, de modo a evitar ansiedade. Em janeiro, o governo federal sancionou a Lei Romeo Mion, que criou a Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. A medida garante prioridade no atendimento de cidadãos diagnosticados. O nome é uma homenagem ao filho mais velho do apresentador Marcos Mion, que tem autismo.
As boas iniciativas se espalham. Aeroportos nos Estados Unidos e na Europa já dispõem de salões equipados com um sistema de iluminação diferenciado, local para descanso e até piscina de bolinhas. Os resorts Walt Disney, na Califórnia e na Flórida, oferecem aos visitantes com necessidades especiais cognitivas um serviço especial que permite o acesso prioritário a atrações e áreas exclusivas de descanso. No Brasil, o Beto Carrero World, em Santa Catarina, também tem entrada preferencial para pessoas com autismo e seus acompanhantes. No Beach Park, parque aquático nas cercanias de Fortaleza, no Ceará, crianças autistas contam com o acompanhamento de salva-vidas treinados. Trata-se, enfim, de controle de estímulos e de cuidado com o acesso. Diz o psiquiatra Guilherme Polanczyk, professor de psiquiatria da infância e adolescência da USP: “Essas ações são objetivas e concretas, pois entendem as características e limitações de pessoas com TEA e adaptam o ambiente para recebê-las, permitindo que estejam mais próximas da sociedade”.
São extraordinários saltos comportamentais, um freio ao estigma, enquanto a ciência lida com a compreensão do autismo — ainda um enigma que afeta uma em cada 59 crianças (incluídas as que possuem um grau leve de autismo). Sabe-se que ele tem influência genética e ambiental, e resulta na comunicação entrecortada entre os neurônios. Mas há muito a ser investigado. O maior estudo já feito de sequenciamento genético do transtorno do espectro autista, publicado em janeiro na revista Cell, identificou 102 genes relacionados à condição. Em 2015, apenas 65 genes eram associados ao TEA. Descobertas como essa abrem caminho para uma maior compreensão da doença. Por ora, como não existe cura, o diagnóstico precoce, feito a partir dos 14 meses de idade, é a ação de maior impacto no futuro dessas crianças — de mãos dadas com a inclusão.
Colaborou Alexandre Senechal
Publicado em VEJA de 19 de fevereiro de 2020, edição nº 2674