A história da pandemia sofreu uma reviravolta nos últimos três meses no Brasil. Em 25 de julho, dia de pico de mortes, a média móvel de fatalidades registrava 1 096 óbitos. Na quarta-feira, 14 de outubro, o número chegou a 502, taxa 54% inferior. Na comparação da estatística atual com a dos últimos catorze dias, a retração é de 29%. Os epidemiologistas trabalham com redução de 15% para considerar o movimento de queda consistente.
Houve ainda um outro feito inédito: a manutenção por três semanas consecutivas, em todo o país, de uma taxa de transmissão abaixo de 1, nível considerado de controle, segundo as balizas do rígido Imperial College, de Londres. O índice indica para quantas pessoas cada infectado transmite o vírus. Há três semanas ele está na casa de 0,93, o que significa que cada 100 pessoas doentes passam o vírus para outras 93 — há, portanto, uma freada.
Há motivos de respiro, evidentemente, mas convém manter a cautela e a atenção. A inclinação na curva de mortes por Covid-19 é provocada por um conjunto de medidas práticas que não podem ser abruptamente abandonadas. A principal delas é o avanço de conhecimento no tratamento dos infectados pelo vírus. Ao longo dos meses, descobriram-se quem são os grupos de risco, a importância do diagnóstico e tratamento precoce dos infectados (e não só quando a infecção apresenta gravidade, como era defendido pela medicina nos primeiros meses), além de terapias eficazes contra a doença. As evidências mais recentes comprovaram que corticoides comuns reduzem a mortalidade de doentes graves quando aplicados no sétimo dia, por exemplo. A prática nos hospitais revelou também que quatro em cada dez mortes por Covid-19 ocorrem por causa de complicações cardíacas, informação até há pouco tempo desconhecida.
Do ponto de vista de comportamento da sociedade, a adoção irrestrita da máscara desempenhou papel fundamental (no início da crise sanitária, a própria Organização Mundial da Saúde indicava a proteção apenas para os infectados). “As medidas de proteção fazem grande diferença na involução da pandemia”, diz Julio Croda, infectologista da Fundação Oswaldo Cruz e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Outra hipótese para explicar a queda é a possibilidade de o vírus ter se tornado “menos virulento” — ou seja, teria evoluído de forma a causar uma enfermidade menos agressiva. Casos mais leves têm sido observados.
É alvissareiro, ainda, enxergar o novo desenho da pandemia no Brasil quando se tem em mente a dimensão do país, pleno de contrastes. A imensidão geográfica fez com que as regiões enfrentassem a disseminação do vírus em momentos diferentes. Enquanto algumas estavam em alta, outras tinham os primeiros contatos com o microrganismo. É como se existissem micropaíses. Por isso, durante quatro meses, a curva se manteve em incômodo platô — sem uma variação abaixo ou acima de 15% nas mortes. Há, agora, inclinação consistente.
Atualmente, do total dos 26 estados e o Distrito Federal, dezenove estão em franca queda e outros sete apresentam estabilidade no número de mortes. Um dos exemplos mais simbólicos é São Paulo. O estado, que foi o primeiro a registrar um caso de Covid-19, em fevereiro, hoje tem uma média móvel de mortes de 124. É muito ainda, mas em patamar controlável. O reflexo pode ser visto nas taxas de ocupação nos leitos de UTI da região metropolitana. Em maio, elas chegaram a estrondosos 92%, e nesta semana haviam caído para 41%.
Há indícios suficientes para sugerir que o pior já passou e que o Brasil vislumbra meses de alguma normalidade. Não se trata, porém, de decretar o fim da travessia. Há um longo caminho a ser percorrido — e ressalve-se, tristemente, que o Brasil contava na quarta-feira 14 com uma média de mortos por milhão de habitantes, na totalidade de registros, de 713 — atrás apenas de São Marino, Peru, Bélgica, Andorra e Espanha. Haverá celebração justificada quando, enfim, surgir a vacina, e ela nunca esteve tão próxima. Mesmo com a suspensão de dois estudos com imunizantes ocorrida recentemente em decorrência de problema com segurança, outros dez imunizantes seguem na última etapa de testes. Três seguem em ensaios no Brasil: da AstraZeneca, da Sinovac Biotech e da Pfizer. E, por estar no epicentro dos principais estudos, o país terá preferência na reserva de doses. As notícias são boas, apesar de tudo, apesar da tragédia.
Colaborou Alexandre Senechal
Publicado em VEJA de 21 de outubro de 2020, edição nº 2709