No começo parecia ser algo longínquo, que atingia os outros, nunca gente próxima, muito menos nós mesmos. Depois, como se fosse uma onda avassaladora, país por país, as pessoas se deram conta que o coronavírus alcançaria a todos, direta ou indiretamente. O impacto emocional que essa percepção tem provocado globalmente não é algo desprezível, muito pelo contrário. Como psicóloga, penso que é chegado o momento de desenvolver estratégias práticas de saúde mental para lidar com os transtornos que o vírus já está causando, assim como aqueles que aflorarão após a pandemia passar.
Eu mesma vivi essa experiência de rompimento súbito e duradouro da rotina. Atualmente moro com a minha família em uma pequena cidade, cerca de meia hora de Nova York. New Rochelle tem a quantidade de moradores de um grande bairro de São Paulo e, apesar de ser geralmente vista como uma cidade de elite, tem população diversificada. Aqui convivem brancos, negros e latinos, gente rica e pobres. De repente soubemos que um morador estava contaminado com a Covid-19 – até agora não se sabe como esse contágio se deu – e rapidamente transmitiu o vírus a várias pessoas próximas, que transmitiram a outras, em rápida progressão. Em questão de dias, New Rochelle foi considerada um “hot spot” pelo governo e uma zona de contenção foi estabelecida, com limites que chegavam a poucos metros de minha casa. De problema distante e contornável, que supostamente afetava apenas chineses e italianos, a pandemia passou a nos atingir em cheio. Nossos vizinhos e nós mesmos (eu, meu marido e dois filhos adolescentes) experimentamos, em rápida sucessão, uma série de mudanças comportamentais urgentes. O grande atrativo de uma pequena cidade bem organizada, a liberdade de ir e vir com segurança, a convicção de uma vida tranquila, as pseudo-certezas de um subúrbio americano, tudo isso pareceu desmoronar e o ambiente tornou-se subitamente imprevisível.
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Clique e AssineAos poucos nos reorganizamos, mas me dou conta da desordem que ficou ao meu redor. Por mais que as autoridades estaduais tenham agido com presteza e responsabilidade, a doença tem cobrado um preço muito alto à minha volta. Isto é fácil de perceber nas conversas (via plataforma virtual) com amigos e pacientes. Não se trata mais de um trauma passageiro provocado por um medo súbito, mas algo bem mais profundo e duradouro que vai requerer atenção e tratamento em grande parte dos casos. A questão é que as habilidades usuais que desenvolvemos para lidar com a vida podem servir para enfrentarmos problemas agudos, mas nos deixam sem repertório para encarar dificuldades crônicas. As estratégias que usamos para responder à ansiedade causada pelo fim de uma relação amorosa, ou a perda de um emprego, nos deixam sem pistas para manobrar algo como o descobrimento de uma doença autoimune de um filho. Desta forma, nas atuais circunstâncias, estaremos frente a frente com um desafio de longo prazo que nos obrigará a nos adaptar a um ambiente totalmente novo, a desenvolver habilidades cognitivas pouco exercitadas até este momento.
Sei o que ocorre aqui, nos EUA, com milhares de imigrantes brasileiros, mesmo aqueles com empregos formais e documentação em ordem. Posso imaginar o que está acontecendo com milhões de imigrantes brasileiros mundo afora, diante de uma pandemia que dá medo, confina as pessoas a espaços limitados, constrange-as a uma convivência por vezes insuportável, além de desenvolver nelas um sentimento de insegurança muito difícil de tolerar.
Epidemias têm mostrado, ao longo da história, facetas do que o ser humano tem de pior. A busca irracional por “responsáveis”, reais ou imaginários, afeta não apenas os incautos, mas homens e mulheres que, em outras situações, agiriam como membros decentes da comunidade. Eleger inocentes como responsáveis (bruxas ou judeus na Idade Média, e chineses hoje em dia) não pode ser explicado apenas pela crueldade ou carência intelectual de alguns, mas pelo fato de muitos perderem suas referências em situações de medo e incerteza.
Tudo isso nos leva a concluir que o pós-pandemia, no qual temos que pensar imediatamente, não deve considerar apenas questões econômicas e sociais, mas também psicológicas. Minha experiência como terapeuta com brasileiros morando no mundo todo tem deixado isso muito claro. Temos que considerar o profundo abalo que a pandemia trouxe aos seres humanos concretos e pensar seriamente em tratá-los desde já para minimizarmos o risco de ter como herança do que ocorre hoje um mundo ainda mais doente.
Ilana Pinsky é psicóloga clínica, terapeuta familiar, mestre, doutora e pós-doutora em Psicologia Medica, foi professora associada da Columbia University, e é pesquisadora visitante na City University of New York (CUNY).