A longa e imprevista quarentena na primeira metade do ano isolou dentro de casa, como nunca antes, os seres humanos e seus animais de estimação, estimulando um companheirismo de intensidade inusitada. Foi ótimo enquanto durou, mas, agora, muitas pessoas que voltam à rotina de trabalhar fora estão tendo de enfrentar um novo desafio doméstico: fazer seu pet carente entender que algumas horas fora não são o fim do mundo. O problema é especialmente grave entre os cães e gatos adotados durante a reclusão, uma demanda que aumentou 50% no Brasil, segundo dados de ONGs e abrigos. Separados dos donos pela primeiríssima vez, os bichinhos têm crises de ansiedade que muitas vezes resultam em um rastro de destruição pela casa. “Os animais se tornaram parte do núcleo familiar e serviram de apoio em meio ao caos que se instaurou. A retomada da vida normal tem de ser feita com cuidado, para que não se sintam deixados de lado”, ensina Silvana Fedeli Prado, psicanalista e superintendente da ONG Patas Therapeutas.
As surpresas trazidas pela separação, em geral, são desagradáveis. A modelo Gabriela Tomilin e o marido, o empreendedor Fernando Gorayeb, adotaram King, um border collie de 2 anos, no fim de abril e os três se tornaram inseparáveis por três meses. Em agosto, pela primeira vez, ela deixou King sozinho e saiu para trabalhar por apenas duas horas. Ao retornar, encontrou o sofá da sala destruído, com espuma espalhada por todo lado, um comportamento que vem se repetindo desde então. “Ele mudou completamente. Quando estamos em casa, é um santo. Mas, se nós dois saímos ao mesmo tempo, a cada retorno tem uma coisa aos pedaços. Até a própria caminha ele explodiu outro dia”, conta Gabriela, que está procurando um adestrador para tentar resolver o problema. Comportamentos extremados quando os donos estão fora muitas vezes são sintomas da síndrome de ansiedade por separação, como os especialistas definem o sofrimento do animal de estimação — cães, principalmente — causado pela ausência da pessoa que ele tem como referência. “Eles se veem no vazio e desenvolvem diversas compulsões. Os sinais vão desde uivar e fazer xixi em local indevido até destruir móveis e se automutilar”, explica a veterinária Kellen Oliveira, presidente da Comissão de Bem-Estar Animal do Conselho Federal de Medicina Veterinária.
As estatísticas mostram que quase metade dos cães apresenta, ao longo da vida, pelo menos um sinal compatível com a síndrome de ansiedade por separação. Entre os gatos, mais conscientes de seu território e acostumados a ficar sozinhos, o índice baixa para 13%. “Prevemos que esse problema, que já é frequente, esteja aumentando muito após o confinamento”, diz a psicóloga Ceres Faraco, especialista em comportamento animal. “Tudo depende da forma como os donos vão acostumar seus pets a ficar sem sua companhia.” No caso de Cross, 5 anos, sem raça definida, a raiz do problema foi a decisão de sua dona, a especialista em recursos humanos Iasmin Campos, 29 anos, de se separar do namorado, com quem dividia o apartamento, durante a pandemia. Em agosto, após mais de quatro meses em home office, ela precisou voltar ao escritório e o pet ficou sozinho em casa. Aí as reclamações dos vizinhos começaram. “Diziam que ele latia, uivava e arranhava a porta quando eu estava fora. Achei difícil acreditar, porque ele sempre foi muito silencioso, mas comecei a notar a porta cada vez mais destruída”, conta Iasmin. A solução encontrada foi a guarda compartilhada: o ex, que está morando em uma casa com quintal, leva Cross para passar o dia com ele algumas vezes por semana.
Ainda não se conhece muito sobre o funcionamento do cérebro canino, mas sabe-se que os cachorros necessitam de vida social tanto quanto de comida e que precisam de rotina para ter um certo controle sobre o que vai acontecer. Quando isso lhes falta, instala-se a insegurança — e lá se vão os tapetes da casa. Alguns donos, sem saber, alimentam essa insegurança ao não permitir que o animal fique sozinho no quintal ou dentro de casa. O afastamento temporário, alertam os especialistas, precisa ser treinado bem antes da mudança da rotina (veja quadro), para que os animais aprendam a ficar sozinhos em seu espaço. Brinquedos e atrações nesse território estimulam o pet a se afastar do convívio dos humanos por conta própria.
Aumentar progressivamente o período que o dono passa fora de casa também ajuda. “Com o tempo, o bichinho entende que não está sendo abandonado, que seu humano deixa água e ração e sempre acaba voltando”, diz o advogado Reynaldo Velloso, presidente das comissões de proteção e defesa dos animais da Ordem dos Advogados do Brasil. Quando o quadro da síndrome de ansiedade de separação já está instalado, porém, o recomendado é procurar ajuda especializada. As receitas dos veterinários e psicólogos entendidos em comportamento dos pets envolvem mudanças de atitude por parte dos donos, treinamento e medicamentos, inclusive ansiolíticos. “O tutor, nesse caso, não saberá resolver o problema sozinho”, avisa Ceres. Como se vê, neste ano em que nada no mundo foi como se conhecia, até os animais precisam dar passos cuidadosos para sair da toca.
Publicado em VEJA de 9 de setembro de 2020, edição nº 2703