Nas anotações da adolescente judia Anne Frank, vítima do Holocausto aos 15 anos e autora do famoso diário escrito durante os dois anos em que ficou escondida com a família em um sótão de Amsterdã, na Holanda, estava a ebulição de pensamentos, dúvidas e descobertas típica da puberdade. Em duas páginas escondidas com papel pardo, reveladas apenas em 2018, a garota escreveu, aos 13 anos, sobre menstruação e outros temas pertinentes a uma jovem que descobria o próprio corpo. A revelação de trechos inéditos dos escritos de Anne provocou barulho e autorizou uma metáfora possível. O mundo lá fora era hostil, gerido pelas barbaridades do nazismo da Alemanha de Hitler. Mas Anne também vivia uma batalha íntima, possivelmente alimentada pela puberdade.
O período faz a passagem da infância para a vida adulta. Há alterações psicológicas para sustentar a maturidade emocional que precisa vir dali em diante e as físicas, que têm como finalidade o estabelecimento da capacidade reprodutiva dos indivíduos. Por isso, há o aparecimento dos caracteres sexuais secundários. Nos meninos, despontam pelos no corpo e no rosto, o testículo cresce e a voz engrossa. Nas meninas, acontece o desenvolvimento dos seios, surgem pelos nas axilas e virilha e ocorre a primeira menstruação. É uma travessia difícil em que quase sempre a criança não entende o que acontece no seu corpo ou na sua cabeça. Quando começa antes da hora, então, dá-se uma confusão que pode deixar marcas.
A puberdade precoce, como o fenômeno é chamado, é um distúrbio até muito recentemente desdenhado e que agora chama atenção de pediatras, dado o crescimento do número de casos. Em geral, o início do período não é esperado antes dos 8 anos nas meninas e dos 9 nos meninos. Contudo investigações científicas demonstram redução nas idades especialmente entre as meninas. De acordo com um levantamento da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, desde 1977 há uma queda de três meses por década para o início do período entre elas. Estima-se, aliás, que a puberdade antes da hora seja vinte vezes mais prevalente no gênero feminino. O problema é que 95% dos episódios têm causa desconhecida. Sabe-se que existe predisposição genética, como demonstra o trabalho do grupo da endocrinologista Ana Claudia Latronico, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Ela pesquisa a associação do distúrbio com mutações em um gene, hipótese reforçada depois que a análise do DNA de 716 crianças de diferentes nacionalidades também apontou a relação.
Variáveis no estilo de vida, no cotidiano e nas relações sociais, no entanto, também podem acelerar o processo. O combo envolve obesidade, sedentarismo, excesso de exposição às telas e até o consumo de conteúdo sexual ou erótico inadequado para a faixa etária. Não surpreende, portanto, que o excesso de horas passadas em frente ao celular ou computador na pandemia tenha contribuído para elevar o aparecimento de ocorrências. É o que mostra um estudo italiano com 490 crianças. Os cientistas analisaram o total identificado entre março e setembro de 2020, primeiro ano da crise sanitária, e o comparou ao mesmo período de 2019. O crescimento de diagnósticos foi de 122%, principalmente entre as meninas. “Uma das causas é que as crianças ficaram expostas às telas nas aulas on-line, nos joguinhos”, explica Durval Damiani, do Instituto da Criança e do Adolescente da FMUSP. A luminosidade inibe a liberação da melatonina, hormônio cuja deficiência estimula a entrada na puberdade. Entre os meninos, tudo isso conta, mas cerca de 60% dos casos têm relação com tumores no sistema nervoso central.
É fundamental tratar as crianças e o acompanhamento psicológico é sempre recomendável. A disfunção pode ter impacto nas interações em sociedade, bem como na relação dos pequenos com o próprio corpo. Outro problema é o crescimento. Primeiro, a criança cresce demais, mas, depois, a evolução para e a estatura fica abaixo da esperada. Isso pode significar uma perda de altura entre 10 e 20 centímetros em relação ao potencial genético do indivíduo. É possível interromper a antecipação por meio de terapia hormonal. Mas é preciso que pais e pediatras sejam rápidos na identificação de que algo está errado, indo mais depressa do que manda a natureza.
Publicado em VEJA de 8 de junho de 2022, edição nº 2792