TERAPIA A DISTÂNCIA
“A última vez que saí de casa foi em 13 de março. Depois disso, percebi que as coisas estavam graves e decidi me isolar. O confinamento me deu uma crise de ansiedade tremenda. Sentia falta de ar. Reagi. Recorri a acompanhamento remoto e pausas para tomar sol. Quando noto que estou começando a ficar nervosa, paro o que estou fazendo e respiro profundamente.”
Um dia, quando formos levados a definir os primeiros meses de 2020, e pudermos ir para muito além de nossas janelas, haverá uma marca incontornável: o isolamento social e, a partir dele, a sensação de tristeza associada ao fechamento compulsório dentro de casa. Há, evidentemente, momentos de alegria e relaxamento com os filhos, com os pais, nas conversas por meio de aplicativos de videoconferência, há as maratonas de séries na televisão, até o intenso trabalho a distância pode ser agradável — mas paira no ar a percepção, nem sempre palpável, de que algo saiu de linha com a saúde mental. É preocupação que agora, com a quarentena em pleno curso, começa a ser medida. Um recente levantamento realizado pela Associação Americana de Psiquiatria mostrou que 36% dos cidadãos nos Estados Unidos sofreram impactos, na forma de prostração severa e depressão, em decorrência do atual confinamento provocado pelo surto de Covid-19 — quadro só comparável ao dos dias e semanas posteriores aos ataques do 11 de Setembro. No Brasil, o desconforto pode ser aferido pelo aumento das consultas virtuais com psicólogos e psicanalistas. O recurso eletrônico, deflagrado em 2018, ganhou tração com atendimentos feitos por WhatsApp, Skype, FaceTime, Zoom etc. Desde o início de março a quantidade de profissionais cadastrados pelos conselhos da categoria e autorizados a atender a distância dobrou — já são quase 90 000. Na plataforma Psicologia Viva, de orientação virtual, com cerca de 4 000 profissionais registrados, o número de atendimentos quadruplicou durante a pandemia. Nos meses de março e abril, o termo “psicólogo on-line” bateu recorde de consultas no Google.
DIVÃ VIRTUAL
“Atendo diariamente das 7 horas da manhã às 7 da noite, por vídeo. Percebo que estão todos mais ansiosos. Vivemos uma revolução comportamental compulsória. Mas lembro aos meus pacientes que a dificuldade é transitória.”
A falta de perspectiva — até quando? — dissemina o incômodo, sobretudo entre os mais propensos a dificuldades, com histórico anterior de desequilíbrio. “A quarentena é composta de fases”, diz o psicólogo Artur Scarpato. “No começo há um otimismo maior, mas com o passar das semanas cresce o sentimento de aprisionamento e de ameaça.” Não é o caso de diluir a indizível agonia de quem sofre com o apartamento, mas pesquisas sobejamente aceitas demonstram que seis em cada dez pessoas desafiam o corte abrupto e experimentam ótimas saídas cerebrais — embora, ressalve-se, diversos trabalhos comportamentais já tenham apontado os danos da falta de relação social (uma experiência publicada em 2015 pelo reputado Departamento de Psicologia da Universidade Brigham Young, de Utah, nos Estados Unidos, mostrou que o risco de morte entre os que vivem muito sós cresce 32% em relação aos mais sociáveis, dado comumente comparado ao da obesidade).
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Clique e AssinePor sorte, a humanidade aprendeu a conviver coletivamente — e a se defender em caso de afastamentos forçados, atalho para transtornos hormonais, neurológicos e comportamentais. O americano John Cacioppo (1951-2018), do Centro de Neurociência Cognitiva e Social da Universidade de Chicago, uma das autoridades mundiais em sua área, desenvolveu uma tese, depois comprovada por antropólogos: os primatas, nossos ancestrais, há mais de 50 milhões de anos, precisavam pertencer a um grupo social, uma família, um bando. Estar sozinho, ou mesmo entre pares com os quais não havia entendimento, provocava como resposta a luta e a fuga. Para Cacioppo, a solidão desencadeava, como ainda desencadeia, a chamada “hipervigilância” — e, em fascinante processo evolutivo, ela foi incorporada ao sistema nervoso. Por isso o exílio deflagra reações físicas, e luta-se para evitá-lo.
ESTRANHAMENTO INFANTIL
“Alice tem 3 anos de idade. Ela achava que o afastamento dos colegas e da escola era um castigo pessoal. Tornou-se irritada e inquieta. Demorou para aceitar a situação. Mas sei que sairemos fortalecidas.”
“Esse período de desassossego nos dá a possibilidade de reavaliar o que é realmente prioridade e construir hábitos que façam mais sentido para nosso propósito de vida”, diz Ilana Pinsky, psicóloga clínica e pesquisadora visitante na City University de New York (Cuny). “É uma chance única para refletir e construir um novo jeito de viver, seja de forma coletiva, seja de modo individual.” Há atividades simples e pequenas sugestões de posturas chanceladas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). São comezinhas, mas produtivas. Uma das mais poderosas é ignorar as fake news. Tentar executar tarefas desafiadoras estimula a mente. Nunca cozinhou? Cozinhe. Não tem o hábito de ler? Leia. “Sairá melhor da quarentena quem conseguir desenvolver novos gostos e não lamentar o passado perdido”, afirma Alfredo Maluf, psiquiatra do Hospital Albert Einstein. Uma boa rotina é unanimidade entre os especialistas. Trabalhar em períodos semelhantes aos que se cumpria no escritório, fazer pausas para refeições. Para o bom sono, fortemente afetado pelo isolamento, desligar celulares, tablets e laptops ao menos noventa minutos antes de apagar as luzes (leia o quadro na pág. 58).
As crianças, os adolescentes e os idosos estão entre os que mais podem sofrer durante o isolamento. Logo que deixou de ir para a escola, Alice, de apenas 3 anos, ligava para os amigos perguntando como estavam as aulas, um tanto perdida. “Ela se recusava a compreender que não podia sair de casa”, conta a mãe, Angelica Ravagnani (leia depoimentos ao longo desta reportagem). Uma pesquisa realizada pela Faculdade de Medicina de Tongji e pela Universidade de Ciência e Tecnologia de Huazhong, na China, mostra que 22,6% dos alunos mais jovens da província de Hubei — o epicentro inaugural da Covid-19 — apresentaram quadros depressivos. Trata-se de uma taxa 5 pontos porcentuais maior que a observada em escolas primárias no resto da China. “Os pequenos têm menor capacidade de organização e planejamento diante da quebra da rotina”, diz Juliana de Oliveira Góis, psicóloga e orientadora pedagógica do Colégio Rio Branco, um dos mais tradicionais de São Paulo. Há menos de um mês, a Associação Americana de Psicologia publicou recomendações acerca do atendimento psicológico específico de jovens em idade escolar. As consultas não podem ser formais e é preciso que se usem recursos on-line interativos, como jogos, por exemplo, para manter a atenção.
Há um atenuante, forte o suficiente para ser posto no rol de consolos: a universalidade do vírus, que não escolhe país nem estrato da sociedade. “Experimentar globalmente os mesmos sentimentos em uma circunstância parecida nos torna mais empáticos com a nossa própria dor e com a dor do outro”, afirma o psicólogo Rossandro Klinjey, fenômeno nas redes sociais. “A temporada de distanciamento experimentada em 2020 fará com que transtornos mentais, até lidados com preconceito por muitos, não soem tão distantes.” E então, em momentos de drama coletivo, quando as perspectivas parecem inexistir, e há imensa dificuldade de encontrar o passo seguinte, convém sempre beber de quem sabe enfrentar essas coisas e, de algum modo, oferecer otimismo: os artistas, a poesia, o cinema.
Para Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), em Desperdício, poema de 1952, ficar sozinho como um Robinson Crusoé nunca foi necessariamente ruim, porque “Solidão, não te mereço, pois que te consumo em vão / Sabendo-te embora o preço, calco teu ouro no chão”. Nos serviços de streaming tem feito muito sucesso um clássico de 1993, a comédia Feitiço do Tempo, com Bill Murray e Andie MacDowell — o relato de um apresentador de meteorologia de televisão, um homem do tempo, enfim, que acorda sempre no mesmo dia, revivendo o que passara nas 24 horas anteriores. É uma situação que começa com graça e vira um incômodo insuportável, uma dor pungente. Phil, o personagem de Murray, chega a desistir da vida, salvo da morte autoimposta porque ao toque do despertador tudo recomeça — do desespero, contudo, ele extrai esperança, vê saídas, entende que seu aprisionamento tem algo de positivo, há um truque legítimo para contorná-lo. “Deixe-me fazer uma pergunta a vocês”, atalha Phil, com olhar desesperado, dois moradores da cidade de Punxsutawney, na Pensilvânia, que ele encontra em um esfumaçado bar de boliche. “E se não houvesse amanhã?” Eles consideram a questão e respondem: “Não haveria consequências, não haveria ressaca, poderíamos fazer o que quiséssemos”.
Não é exatamente assim agora, com o isolamento imposto pela pandemia. Sempre teremos o amanhã, mas os profissionais de saúde recomendam lidar com a metade do copo cheia, e não com a metade vazia. O.k., parece haver um tanto de obviedade nas recomendações de manter a cabeça ocupada, mas não. Um bom, histórico e adequado exemplo é o do iluminista francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que, em 1743, indo de Paris a Veneza, foi pego pela peste e teve de parar em Gênova. Ele faz o relato de sua quarentena, totalmente só, nas Confissões (1782). Ocupou então um edifício em ruínas de dois pavimentos, sem conforto algum. Lia e escrevia. “Comecei a me organizar para os meus 21 dias, exatamente como deveria ter feito durante toda a minha vida”, resumiu. Para a filósofa Catherine Malabou, Rousseau “pôs a quarentena em quarentena”, ou seja, criou uma ilha íntima de tranquilidade dentro do arquipélago da solidão. Pode ser um bom caminho — mas é provável que seja preciso o apoio de profissionais da mente. A distância, é claro.
Publicado em VEJA de 13 de maio de 2020, edição nº 2686