‘As doenças inflamatórias intestinais são uma questão de saúde global’
Casos de doença de Crohn e a reticolite ulcerativa têm aumentado inclusive no Brasil e na América Latina, segundo médico canadense Remo Panaccione

Alto consumo de ultraprocessados, depressão, estresse e tabagismo estão ligados a enfermidades conhecidas, como câncer, diabetes e obesidade. Esses fatores, quando combinados à predisposição genética, podem ser o estopim para condições em ascensão no mundo e que levantam alertas de especialistas em saúde do trato intestinal: a doença de Crohn e a reticolite ulcerativa, principais enfermidades que se encaixam no conceito de doenças inflamatórias intestinais.
No Brasil, um levantamento da Federação Brasileira de Gastroenterologia (FBG) divulgado no início deste mês mostra que mais de 200 mil brasileiros convivem com doenças inflamatórias intestinais e seus sintomas de dor abdominal, alterações intestinais, inchaço e náuseas. Os dados, coletados na plataforma DataSUS, do Ministério da Saúde, são apontados pela entidade como um sinal de alerta para que profissionais de saúde e a população em geral conheça mais essas condições e que hábitos saudáveis sejam estimulados.
Mas há muito trabalho a ser feito para reverter a predileção por alimentos ricos em gordura, açúcares e sódio e tirar a população mundial do estado de estresse constante, estimulado pela cultura de “performar bem” em todas as áreas da vida. O médico canadense Remo Panaccione, professor de Medicina e diretor da Unidade de Doença Inflamatória Intestinal e de Pesquisa de Gastroenterologia da Universidade de Calgary Cátedra, tem acompanhado de perto esses fatores e o crescimento das doenças inflamatórias intestinais ao redor do globo.
Em entrevista por e-mail, Panaccione conversou com VEJA sobre essas enfermidades, as populações mais vulneráveis, o papel dos ultraprocessados e o tratamento. “As doenças inflamatórias intestinais são uma questão de saúde global. Na América do Norte, Europa e Oceania, é previsto que elas atinjam 1% da população na próxima década”, afirmou. Leia abaixo.
Quando pensamos sobre doenças inflamatórias intestinais, quais são as mais prevalentes na população global? Quando falamos de doenças inflamatórias intestinais, estamos abrangendo a doença de Crohn e a reticolite ulcerativa. A incidência dessas doenças apresentou mudanças epidemiológicas notáveis em todo o mundo, pois essas condições são doenças modernas de tempos modernos, enraizadas na industrialização da sociedade. Historicamente, elas eram mais prevalentes em áreas industrializadas, mas, agora, vemos a incidência e a prevalência aumentar em países recém-industrializados e emergentes, como é o caso do Brasil e da América Latina como um todo, além de África e Ásia. Ou seja, hoje, as doenças inflamatórias intestinais são uma questão de saúde global. Na América do Norte, Europa e Oceania, é previsto que elas atinjam 1% da população na próxima década.
Existem populações mais vulneráveis ao desenvolvimento dessas condições? Sim. Algumas populações são mais vulneráveis ao desenvolvimento de doença inflamatória intestinal devido a uma combinação de fatores genéticos, ambientais, microbianos e relacionados ao sistema imunológico. Os grupos vulneráveis geralmente estão na faixa etária de 15 a 35 anos e apresentam fatores de risco como predisposição genética, questões ambientais (hábitos comportamentais e alimentares), fatores geográficos (maior incidência em centros urbanos do que em áreas rurais), imunológicos (maior propensão entre pacientes com psoríase, artrite reumatoide ou colangite esclerosante primária), além de tabagismo e problemas de saúde mental como estresse, depressão e desigualdade socioeconômica.
Nos últimos anos, a população em geral tem falado mais sobre colite ulcerativa e doença de Crohn. O que tem impulsionado essa tendência? Acredito que o aumento dos assuntos envolvendo recolite ulcerativa e doença de Crohn e a crescente conversa sobre doenças inflamatórias intestinais é impulsionada por vários fatores. Talvez, o mais forte deles seja o fato de que, antes restrita a países ocidentais, elas apresentam crescimento a nível global e especialmente na Ásia, Oriente Médio e América do Sul, como mencionei. Esse crescimento dos números de incidência entre jovens gera preocupação para os médicos em relação à qualidade de vida do paciente a longo prazo e maior engajamento do assunto com a sociedade e o poder público. Em paralelo, as pesquisas avançam tanto em novos achados sobre a relação entre dieta, microbioma e patogênese da doença quanto no desenvolvimento de novos medicamentos, como biológicos e pequenas moléculas, com melhores resultados para os pacientes. Outro ponto relevante para o crescimento do debate, é o impacto econômico significativo com altos custos para sistemas de saúde, com hospitalizações e custos cirúrgicos, além de perda de produtividade do paciente, fato que atrai a atenção de gestores públicos.
Podemos dizer que, além dos avanços médicos, também houve uma redução no estigma em torno dessas doenças? O uso das redes sociais pelos próprios pacientes e também por grupo de defesa dos pacientes tem ajudado a aumentar o conhecimento sobre doenças inflamatórias intestinais. O que vemos em muitos países é que mais pessoas, em alguns casos até figuras públicas e celebridades, estão compartilhando suas experiências pessoais com a doença de Crohn ou a retocolite ulcerativa, o que ajuda reduzir o estigma e promovem diálogos abertos, compreensão e empatia, tornando mais fácil para os pacientes discutirem suas condições sem medo de julgamento e sem vergonha.
Estamos vendo novas abordagens terapêuticas utilizando anticorpos monoclonais, particularmente para casos moderados a graves que não respondem aos tratamentos convencionais ou até mesmo às terapias avançadas, como os bloqueadores de proteínas causadoras de inflamação. Por que a ciência está focando nesses quadros mais complexos? Esses casos mais complexos ainda representam uma necessidade médica não atendida, pois pacientes com doenças inflamatórias intestinais moderada a grave que não respondem às terapias padrão geralmente sofrem de sintomas persistentes, têm sua qualidade de vida reduzida e aumento do risco de complicações, como estenoses, fístulas, abcessos. A chegada das terapias avançadas, medicamentos biológicos ou pequenas moléculas, permitiu que a classe médica adote a abordagem “treat-to-target” (T2T), buscando a remissão e cicatrização da mucosa como metas de longo prazo. Embora o foco seja, tradicionalmente, nos quadros avançados, há um crescente interesse na intervenção precoce em pacientes de alto risco a fim de que aconteça uma redução de complicações e custos a longo prazo.
Pesquisadores têm estudado o impacto de dietas ricas em alimentos ultraprocessados no desenvolvimento de doenças que afetam o intestino, inclusive o câncer. Isso também se aplica a condições como colite ulcerativa, doença de Crohn e outras doenças inflamatórias intestinais? Os padrões alimentares ricos nesses tipos de alimentos contribuem para o desenvolvimento e progressão das doenças inflamatórias intestinais por levar a alterações no microbioma intestinal e aumento da permeabilidade intestinal. Isso pode desencadear ativação imunológica e inflamação intestinal crônica, além da redução de compostos anti-inflamatórios essenciais para a produção de ácidos graxos de cadeia curta que mantêm a integridade da barreira intestinal e modula a inflamação. Podemos destacar alguns exemplos de alimentos que podem vir a ser a causa do desenvolvimento de doenças inflamatórias intestinais, como emulsificantes, adoçantes artificiais, conservantes, açúcares refinados e gorduras trans. Embora a dieta, por si só, raramente seja suficiente para o controle da doença, especialmente nos casos moderados a graves, ajustes dietéticos complementam terapias médicas e melhoram os sintomas em alguns pacientes.
Quais avanços ainda são necessários para tratar melhor as pessoas que vivem com doenças inflamatórias intestinais? Existem várias necessidades significativas que não são atendidas no manejo do quadro. O diagnóstico precoce e preciso pode ser mais difícil, pois os sintomas se sobrepõem com outras condições gastrointestinais e as ferramentas de diagnóstico atuais (endoscopia, imagens ou biomarcadores) nem sempre fornecem uma imagem clara nas fases iniciais ou em pacientes com doença leve. O ideal seria termos acesso a biomarcadores e ferramentas genéticas que ajudam a prever quais pacientes respondem aos tratamentos específicos, o que permite estratégias terapêuticas mais eficazes. Acredito que nossa maior necessidade seria de terapias de manutenção mais eficazes a longo prazo que promovam remissão duradoura enquanto minimizam os efeitos colaterais e melhoram a qualidade de vida dos pacientes.
Na sua opinião, quais abordagens devem ser adotadas no futuro para melhorar a qualidade de vida e garantir uma melhor saúde para os pacientes com essas condições? As abordagens são muitas e passam pelo diagnóstico e intervenção precoces, com os casos sendo identificados em estágios iniciais com maiores chances de sucesso nos tratamentos, prevenção de complicações, além de tratamento multidisciplinar, acesso a tratamentos avançados, monitoramento dos sintomas, metas de tratamento mais ambiciosas e educação e empoderamento dos pacientes. Adicionalmente, mais estudos e inovação seguem sendo cruciais tanto do ponto de vista do desenvolvimento contínuo de terapias avançadas, como medicamentos biológicos e pequenas moléculas, que representam opções de tratamento mais direcionadas e eficazes para pacientes com doença inflamatória intestinal moderada a grave, quanto o melhor entendimento dos mecanismos da doença, o papel do microbioma, alimentação e estilo de vida.