Conheci Clara e Ana no sertão de Alagoas. Com 15 e 16 anos, respectivamente, as duas adolescentes já carregavam filhos recém-nascidos nos braços. Infelizmente não é incomum conhecermos meninas tão jovens e já mães no Brasil, pois esse é o resultado direto da negligência do Estado na proteção da saúde sexual e reprodutiva de crianças e adolescentes. Para cuidarem dos filhos, Clara e Ana abandonaram a escola e vivem integralmente para o zelo familiar. O sustento vem dos familiares que trabalham na informalidade. Elas não tinham informações sobre como prevenir a gravidez.
O país registra altas taxas de gravidez na adolescência: foram 59 nascimentos por 1 000 meninas de 15 a 19 anos em 2017, o dado mais recente. Nos Estados Unidos, no mesmo ano, a taxa ficou em 20, enquanto em Portugal e no Canadá foi de 8. Nas áreas mais pobres e periféricas do Brasil esses números são ainda mais altos. Há um ciclo na pobreza que torna meninas e jovens mais vulneráveis a uma gravidez precoce: menor acesso à educação e a políticas de saúde sexual e reprodutiva, miserabilidade, maior risco de violência sexual. A gravidez na adolescência, por sua vez, agrava esse ciclo de exclusão social, como mostra o exemplo das alagoanas Clara e Ana, filhas de mulheres que também não terminaram a escola. A questão é de justiça, essencial para o futuro do país.
A solução para o problema não é uma cruzada contra o sexo, como propôs recentemente Damares Alves, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Segundo ela, a abstinência é o único método contraceptivo 100% eficaz. Essa avaliação não é ideológica, como os partidários do atual governo costumam caracterizar as críticas às suas propostas, mas baseada em evidências. Em primeiro lugar, é preciso considerar que o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019 registrou 180 estupros por dia no Brasil. A violência sexual foi e é majoritariamente cometida contra mulheres e meninas, das quais mais da metade (53%) eram crianças com 13 anos ou menos. Isso significa mais de sete estupros por hora. Por ano, mais de 60 000 mulheres ou meninas são submetidas a violência sexual com risco de engravidar — para elas, o debate sobre abstinência, além de não fazer nenhum sentido, é ofensivo. Precisam de acesso à informação para identificar a agressão, acesso aos serviços de saúde sem estigma para fazer a profilaxia de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e gravidez e, se tudo falhar, acesso ao aborto legal e seguro para não sofrer a tortura fruto da violência.
Mesmo para relações consentidas entre adolescentes, não restam dúvidas de que programas que priorizam a abstinência sexual como método contraceptivo não funcionam. Muitos foram testados, e os resultados são contundentes: a idade da iniciação sexual não é alterada, não há diminuição da taxa de gravidez na adolescência e tais programas não são efetivos na prevenção de ISTs. Há estudos que mostram o revés, ou seja, que houve a exposição dos jovens a maiores riscos: aumento na taxa de gravidez na adolescência e de ISTs. A razão para a pouca efetividade desses programas não é complexa: quando se preconiza a abstinência sexual como um objetivo moral, seu descumprimento é estigmatizado, assim como tudo relacionado ao descumprimento — ou seja, precisamente a informação sobre como fazer sexo seguro. Infere-se que não é necessário dar acesso completo à informação sobre saúde sexual e reprodutiva a adolescentes que estão sendo incentivados a não praticar sexo algum, e há negligência de cuidados para aqueles que são sexualmente ativos (vale lembrar que atualmente 55% dos adolescentes entre 15 e 19 anos no Brasil já iniciaram sua vida sexual). O impacto negativo desses programas requer muita seriedade e cautela, pois eles são deletérios à saúde e violam direitos fundamentais e normas éticas profissionais.
Propostas ideológicas, como a do atual governo, ignoram as melhores práticas e as evidências científicas
Outros países já demonstram estar aprendendo a lição. Em 1981, os Estados Unidos iniciaram com dinheiro público o financiamento de programas nos quais a pasta de Damares se espelha. Desde então, até 2017, já foram gastos mais de 2 bilhões de dólares em programas que promovem a abstinência até o casamento. A ineficácia e os problemas éticos dessas intervenções mostraram-se tão significativos que desde 2004 os estados desse país começaram a abdicar das verbas federais a eles destinadas. Em 2009, quase metade das unidades federativas dos Estados Unidos já não aceitava o orçamento. O Estado da Califórnia nunca o aceitou.
Entre 2004 e 2013, mais de treze países da África Subsaariana receberam 1,4 bilhão de dólares para um plano emergencial de assistência à aids. Um terço da verba era reservado exclusivamente a programas religiosos de abstinência. O resultado esteve longe do esperado: não houve redução de gravidez nem de ISTs. Os efeitos negativos também foram preocupantes: estímulo ao casamento precoce, diminuição de acesso à informação adequada sobre HIV/aids. A política acabou sendo tão desastrosa que em 2016 a iniciativa em países da África Subsaariana de prevenção ao HIV para meninas e mulheres excluiu programas que promovem somente abstinência sexual.
Não é preciso muito esforço para evidenciar o teor ideológico das manobras da ministra Damares. São ideológicas, pois não se trata de saúde sexual e reprodutiva — já que ignoram as melhores práticas e evidências científicas —, mas sim de doutrinação para uma concepção missionária sobre os sentidos do sexo nas relações humanas. Para proteger meninos e meninas de uma gravidez precoce, prevenir ISTs ou até mesmo promover políticas para o adiamento da iniciação sexual, devem ser levadas em conta propostas educacionais que reconheçam a sexualidade como parte do desenvolvimento humano. Há consenso internacional sobre a efetividade da promoção de uma educação integral em saúde sexual e reprodutiva.
Programas como os que o ministério de Damares cogita iniciar não vão diminuir a gravidez na adolescência nem as taxas de ISTs, mas certamente violarão direitos fundamentais de dignidade e saúde, e os efeitos somente serão sentidos em largo prazo na forma de maior pobreza, maior evasão escolar e piora da violência. O Estado tem a obrigação de formular políticas públicas que não desrespeitem direitos, que sejam baseadas em evidências e que promovam informação correta. Educação sexual e reprodutiva nas escolas, com ênfase na diminuição da desigualdade de gênero e na promoção de justiça social com combate efetivo à pobreza, seria o mais adequado.
* Ilana Ambrogi, médica e psicóloga pelas universidades Northwestern e Carolina do Norte, é pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis)
Publicado em VEJA de 22 de janeiro de 2020, edição nº 2670