Não dá para negar que é difícil, como estrangeiro, se estabelecer nos Estados Unidos. São mais de vinte anos por aqui e posso dizer que estou mais tranquilo. Em janeiro, completei uma década como diretor do maior centro de transplantes do país, o Miami Transplant Institute. Temos um dos melhores programas de transplantes do mundo, e dentro de um sistema público.
Eu me apaixonei por essa área da medicina ainda na faculdade. E vim pra cá em 1999 para buscar treinamento. Na primeira cirurgia em que vi um transplante multivisceral com o médico retirando os órgãos do paciente e deixando apenas o coração e os pulmões, pensei: “Como esta pessoa está viva? Como é possível dar uma chance de vida a esses pacientes?”. Aquilo ficou na minha cabeça. Então segui esse caminho. No início, foquei muito nos pacientes pediátricos, porque a maioria dos casos que chegavam envolviam crianças que precisavam de transplante de fígado e intestino. Em 2003, fui para o estado de Indiana criar um programa de transplantes de intestino e de múltiplos órgãos. Seria o diretor e sabia que o sistema americano é difícil, tudo é monitorado pelo governo e a cobrança é altíssima.
Meu primeiro transplante dentro do programa aconteceu em 2004 e o paciente está vivo até hoje. No começo, não tinha nada estabelecido, mas chegamos a fazer trinta transplantes viscerais por ano e dobrar a sobrevida dos pacientes em um ano, atingindo uma taxa de 80%. Esses casos são desafiadores. Alguns pacientes são operados vinte, trinta vezes. A cirurgia de múltiplos órgãos é trabalhosa. E é feita em poucos lugares porque demanda muito da instituição — você precisa ter uma boa UTI, banco de sangue…
Já fiz transplantes de até oito órgãos na mesma pessoa: fígado, pâncreas, intestino, cólon, baço, estômago e dois rins. Isso só é possível com muita dedicação, muito suor ou mesmo uma obsessão. Adoro quando vem um paciente que fala que não tem saída para o caso dele e mostro que não é bem assim. Na nossa experiência, há mais de 80% de chance de sobreviver após o procedimento. Isso muda a vida dele e da família. A única coisa que não tiro é a esperança.
As crianças são meu ponto fraco, porque não carregam as memórias das dificuldades. Depois que melhoram, vemos elas voltando para a escola. Tem criança que nunca comeu por causa de uma doença e descobre o sabor da comida. Voltam para me visitar e peço para me escreverem uma carta todo ano. É o meu pagamento.
Claro que temos perdas. Quando alguém morre, passo para o familiar que tentamos de tudo. Porque uma coisa é tentar e outra é morrer sem ter entrado na fila nem conseguido o transplante. Acredito que é mais fácil de superar assim, porque há o fechamento de um ciclo. Fizemos tudo que era possível.
Estamos tendo muita colaboração com o Brasil, já operei pacientes pela Rede D’Or e continuo em contato próximo, porque o Brasil é o país da oportunidade. Dizem que são os Estados Unidos, mas é o Brasil. Temos pessoas fantásticas, profissionais excelentes. Já recebi por aqui pacientes, estudantes, médicos e enfermeiros brasileiros. Vejo como uma contribuição ao meu país.
Nesses dez anos, desde que assumi o Miami Transplant Institute, aumentamos o número de procedimentos e não paramos nem na pandemia. Os pacientes não podiam morrer e acertamos a logística. Em 2020, foram 721 transplantes e tínhamos batido o recorde no ano anterior, com 747. Posso dizer que consegui tudo que queria fazer, ajudando pacientes americanos e de fora e ganhando até prêmios. Mas sei que nada disso acontece sem a doação de órgãos, e respeito muito aqueles que viabilizam a vida para os outros.
Rodrigo Vianna em depoimento dado a Paula Felix
Publicado em VEJA de 31 de maio de 2023, edição nº 2843