Estamos vivendo momentos de genuína excitação nos raros anos em que a Academia Sueca oferece o Nobel de Medicina a técnicas descobertas há pouco tempo e, acima de tudo, já postas em prática e bem-sucedidas. Foi o caso da premiação dos imunologistas James P. Allison, de 70 anos, do MD Anderson Cancer Center, da Universidade do Texas, nos Estados Unidos, e de Tasuku Honjo, de 76 anos, da Universidade de Kyoto, no Japão. Na segunda-feira 1º, a dupla foi celebrada por desenvolver, nos anos 1990 — outro dia, para os padrões do Nobel —, uma nova forma de combate ao câncer. É a chamada imunoterapia, procedimento que usa a capacidade das próprias células de defesa do organismo na luta contra o tumor.
A base da técnica premiada tem uma abordagem totalmente nova na oncologia. É um salto extraordinário e inventivo. Em vez de bloquear o crescimento do tumor, como fazem os outros tratamentos, a imunoterapia facilita a ação do sistema de defesa, uma rica orquestra composta de células e substâncias que ajudam o corpo a lidar com vírus, bactérias e outros invasores, para matar o câncer. O americano Allison estudou o funcionamento da proteína CTLA-4, e o japonês Honjo, o de uma outra proteína, a PD-1. Ambas, naturalmente produzidas pelo organismo, regulam a ação dos linfócitos T, os principais soldados do mecanismo imunológico contra invasores, tornando o organismo apto a combater as células de tumor.
Até hoje, foram desenvolvidos três remédios com base nas duas descobertas associadas ao Nobel deste ano: o ipilimumabe (Yervoy), aprovado em 2011, o nivolumabe (Opdivo) e o pembrolizumabe (Keytruda), estes liberados em 2014. Há também outros dois medicamentos que agem no sistema imunológico por meio de processos semelhantes. Estima-se que ao menos 100 000 pessoas já tenham se beneficiado da imunoterapia em todo o mundo. No Brasil, o tratamento ainda não é oferecido pelo Sistema Único de Saúde. Há planos de saúde privados que disponibilizam a terapia, que custa uma fortuna: em torno de 50 000 reais por mês. Os remédios imunoterápicos são usados em diversos tipos de câncer, como melanoma, pulmão, bexiga, fígado, estômago, linfoma, intestino, rim e cabeça e pescoço. Costumam ser indicados para pacientes em estágios mais avançados da doença que já tentaram outros caminhos, como a cirurgia, a quimioterapia e a radioterapia, mas sem sucesso. Diz Paulo Hoff, oncologista e presidente da oncologia da Rede D’Or: “O Prêmio Nobel reconheceu a velocidade, cada vez maior e mais interessante, da aplicação da ciência para o desenvolvimento de novos tratamentos eficientes e pouco tóxicos”.
Os medicamentos imunoterápicos costumam ser indicados para pacientes em estágios mais avançados que já tentaram outros caminhos
Os medicamentos imunoterápicos têm se mostrado incrivelmente eficazes. Reduzem a taxa de mortalidade em 50% nos casos de câncer de pulmão metastático. Em algumas variedades de melanoma, chega-se a 60% de remissão. Contudo, eles não funcionam para todos os doentes da mesma forma. Dependendo do tipo de tumor, só agem em cerca de 30% das pessoas. O tempo de uso também varia para cada paciente. Em alguns, o tumor pode desaparecer por completo em dois meses, dando uma nova vida a pessoas que estavam desenganadas, sem perspectiva de tratamento. Em outros, o tratamento pode durar dois anos. Ou não funcionar. A instabilidade acontece por dois motivos. Um deles é o fato de o procedimento ter como base o complexo sistema imunológico. O segundo ponto: quando se trata de câncer, não há uma só via de ataque. E dificilmente haverá. Para o futuro próximo, esse que já está aí, imagina-se a combinação de estratégias, de acordo com as características individuais dos tumores e do doente.
Por enquanto, os remédios imunoterápicos são usados separadamente ou com quimioterapia. Mas há estudos que mostram que a combinação entre eles é um atalho inexorável. Uma pesquisa publicada em agosto na revista científica New England Journal of Medicine revelou resultados empolgantes na combinação de dois imunoterápicos: prolongou a vida das pessoas com um tipo de câncer gravíssimo que havia se espalhado para o cérebro. Um ano após o início do tratamento combinado, 82% dos doentes estavam vivos. Com as terapias tradicionais, só 20% dos pacientes nessa situação, em média, sobrevivem depois de doze meses. “Há uma estrada brilhante para esses novos remédios, e a tendência é que sejam usados também em pacientes com câncer em estágios mais iniciais”, diz Fernando Maluf, oncologista da BP Mirante e do Hospital Albert Einstein, em São Paulo.
O câncer ainda é a segunda principal causa de morte em todo o mundo. Calcula-se que a doença será responsável por mais de 9 milhões de vítimas somente neste ano. No Brasil, a estimativa é de 243 000 casos fatais. O cenário já foi pior. Graças à criação dos recursos de diagnóstico precoce, à valorização dos hábitos saudáveis e, sobretudo, ao refinamento e à diversificação de medicações, a taxa de mortalidade por câncer entre homens e mulheres caiu 26% nas últimas duas décadas nos Estados Unidos. No caso de alguns tipos de tumor, como o de próstata, a evolução foi ainda mais extraordinária. Em 1960, 56% dos homens estavam vivos cinco anos após o diagnóstico de câncer de próstata. Hoje, a taxa é de 99%. Grande parte dos avanços está associada aos três tratamentos convencionais e plenamente estabelecidos: a cirurgia, a quimioterapia e a radioterapia. Essas estratégias continuam, sem dúvida, indispensáveis para a maioria dos tumores. Com a imunoterapia, vive-se uma quarta e revolucionária etapa.
O avanço mais espetacular na era pré-imunoterapia ocorreu com a chegada dos medicamentos chamados de terapia-alvo, uma quimioterapia direcionada, com menos efeitos colaterais. Com base no conhecimento das características genéticas do câncer, a terapia-alvo bloqueia o crescimento e a disseminação das células cancerígenas. O remédio que inaugurou essa classe foi o trastuzumabe (Herceptin), aprovado nos EUA em 1998 e considerado ainda hoje um grande feito no tratamento da doença. As cirurgias também estão mais precisas e os equipamentos de radioterapia, mais modernos.
Durante muito tempo, falou-se na cura do câncer, a bala de prata tão ambicionada. Há algum tempo não é mais o caso de buscar essa vitória final. Não se trata de curar o câncer, mas sim de preveni-lo e atacá-lo com rapidez e qualidade. Os avanços nas cirurgias, na quimioterapia e na radioterapia significaram grandes saltos — a imunoterapia, que o Nobel celebrou, é um voo cada vez mais promissor.
Publicado em VEJA de 10 de outubro de 2018, edição nº 2603