Desde que a retomada gradual das atividades presenciais começou a devolver vida às cidades, há elementos inerentes à condição humana que parecem ter preenchido a atmosfera com tal intensidade que, às vezes, é quase possível tocá-los. É assim com a explosão da alegria no reencontro ou ao experimentar a liberdade do primeiro vento no rosto sem máscara. Um dos movimentos, especialmente, tornou-se onipresente no plano das expressões culturais e agora se revela como poucas vezes na história. De alguns meses para cá, o desejo sexual tomou de arrebate lançamentos de streaming, shows de música, desfiles de moda e ideias de decoração. A libido, que modula comportamentos, é que dá as cartas neste segundo semestre de 2021, menos angustiante e mais promissor.
A efervescência em torno do tema não é de todo surpreendente. Momentos parecidos marcados por explosões de volúpia e deslumbre foram registrados em seguida a períodos dolorosos, como a I Guerra Mundial (1914-1918) e a gripe espanhola (1918-1920). A exuberância da década de 20, tão bem descrita por Francis Scott Fitzgerald no magistral O Grande Gatsby, livro de 1925, despontou como reação ao sofrimento imposto pelas duas tragédias. Nos Estados Unidos, à II Guerra Mundial (1939-1945) sucedeu-se o aumento expressivo do nascimento de crianças, criando a geração baby boomer. “São manifestações globais de vontade de viver, de usufruir tudo o que seja bom”, diz a psiquiatra Carmita Abdo, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade do Hospital das Clínicas.
O fenômeno atual é um tantinho exagerado. Ele é concentrado no exercício do desejo sexual, sinônimo de liberdade sem freios, e de tudo o que surge a partir disso. O empresário Facundo Guerra, profícuo criador de atrações da noite paulistana e dono de uma admirável capacidade de entender transformações da sociedade, o sintetiza precisamente. “O distanciamento de corpos imposto pela pandemia fez com que saíssemos do campo do prazer e entrássemos na área do desejo”, diz. Com as limitações para a concretização do ato sexual, o ser humano voltou-se, na quarentena, ao cultivo da atmosfera que incita e estimula o erotismo, dando ao desejo, e não ao sexo em si, o protagonismo. E, enfim, tudo virou desejo, e ele paira no ar.
Em todas as épocas, pensamentos, conceitos e buscas humanas são manifestados por meio da cultura. O desejo, até pouco tempo atrás tão cercado de tabus, tornou-se matriz de trabalhos artísticos que exprimem o espírito deste tempo. Nas onipresentes plataformas de streaming, nada menos do que três opções chegaram ao público desde junho. A série Sex/Life, da Netflix, bateu recordes de audiência ao contar a história de uma mulher casada e mãe que retoma o romance com o ex-amante, sendo acompanhada em 67 milhões de lares ao redor do mundo. Há menos de um mês foi ao ar, também na Netflix, o reality Goop: Muito Além do Prazer, comandado pela atriz Gwyneth Paltrow. O programa se propõe a encorajar casais a investir em formas de exercitar o desejo. Ao mesmo tempo, a Globoplay levou ao ar Verdades Secretas 2, continuação da trama de 2015 de Walcyr Carrasco, colunista de VEJA, pautada no mundo da moda e da prostituição. A nova temporada surge com cinquenta capítulos, 67 cenas de sexo e um bom espaço dedicado a ritos, fantasias e fetiches. A série está entre os trending topics no Twitter e foi vista por 365 000 pessoas nos primeiros quatro dias.
Na moda, figurinos evocam a excitação por meio das transparências, fendas, recortes, couros e decotes. Casas como Dior, Miu Miu e Saint Laurent desfilaram peças cortadas por esse molde, e gente que inspira comportamentos, as modelos Kendall Jenner e Zoë Kravitz entre elas, já exibem os novos modelos. Em suas passagens por Paris durante a Semana de Moda, as brasileiras Bruna Marquezine e Juliana Paes entraram no clima e usaram roupas insinuantes, coladas ao corpo e pontilhadas de transparências. Porém nenhuma personalidade resumiu tão bem o ambiente com um único figurino quanto Madonna — sempre ela, claro. A loira surgiu na festa do MTV Video Music Awards 2021, há poucas semanas, com visual dominatrix fashion, fazendo referência à dominadora na prática BDSM (Bondage, Disciplina, Submissão, Sadismo e Masoquismo). “Depois de tanto tempo em casa, estamos cheios de desejo”, diz a estilista e consultora de moda Manu Carvalho. A era da libido deixa sua marca também no design. Há pouco tempo, o arquiteto Felipe Protti, do estúdio de design Prototyp&, de São Paulo, recebeu o pedido de um cliente para projetar um darkroom (quarto escuro, em inglês), com inspirações vikings e móveis adaptados de maneira a permitir a realização de fantasias sexuais. Entre os materiais, couro, veludo, argolas e cordas náuticas para bondage — prática BDSM de amarrar consensualmente o parceiro para fins eróticos ou sensoriais.
“As pessoas estão se soltando”, diz o designer, que criou ainda uma linha de mobiliário com peças inspiradas na relação do objeto com o corpo. “O design dá forma ao prazer.” Depois do Carnaval de 2022, o empresário Facundo Guerra abrirá em São Paulo o que pode ser considerada a representação física de todo esse movimento. O lugar onde antes era a boate Love Story, no centro da capital paulista, se transformará em um espaço dedicado ao puro e livre exercício da libido. “O palco terá performances ritualizadas e teatrais de práticas fetichistas, que são confundidas com pornografia, mas não são”, explica Facundo. Entre as representações artísticas eróticas da casa estarão o shibari (técnica japonesa de amarração do parceiro), pole dance, swing e voyeurismo. Também haverá quartos para quem desejar praticar o que viu e usufruir esse tão necessário reencontro com a vida, a boa vida que merecemos.
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2021, edição nº 2763