“Por que algumas cenas despertam pensamentos que parecem pertencer a sonhos de lembranças precoces e sombrias, como meu velho brâmane Moonshie teria atribuído a um estado de existência anterior? São as visões de nossos sonhos que flutuam confusamente em nossa memória e são evocados pela aparência de objetos reais que, em qualquer aspecto, correspondem aos fantasmas que eles apresentavam a nossa imaginação?” Foi assim, dessa maneira tão bela, que o romancista escocês Walter Scott (1771-1832) descreveu, em 1815, no livro Guy Mannering, or the Astrologer, o que hoje se conhece como déjà-vu – em francês, “já visto”.
O escritor estava quase certo ao supor que o fenômeno definido pela inusitada sensação de ter vivido no passado uma situação experimentada no presente esteja atrelado a situações concretas, nem tão etéreas. De acordo com o consenso mais recente da ciência, o acontecimento é mesmo resultado de uma comparação instantânea feita pelo cérebro entre uma experiência anterior e a que ocorre naquele momento e cujo gatilho — eis a novidade — é a similaridade da disposição espacial de móveis, objetos e pessoas. Está no layout, enfim, dizem os estudos, um dos segredos do déjà-vu.
O escritor escocês, portanto, estava correto ao pensar nos objetos como peças capazes de desencadear a sensação. Faltou imaginar que sua distribuição no ambiente fosse decisiva, assim como a de outros elementos que fizeram parte de um cenário visto previamente. “Ainda não sabemos tudo sobre o déjà-vu, mas a semelhança da distribuição espacial entre duas situações contribui para seu surgimento”, explica Anne Cleary, da Universidade do Estado do Colorado, autora do trabalho mais recente sobre o assunto. Um exemplo fácil de entender: uma pessoa chega a um restaurante onde nunca havia ido antes e, por instantes, tem a impressão de que já esteve ali. É uma ilusão. Na verdade, o que seu cérebro fez foi permitir que subissem à tona as sensações guardadas quando, no passado, ela esteve em algum lugar onde mesas, cadeiras e pessoas se encontravam em posições semelhantes.
À primeira vista, a informação pode parecer apenas uma curiosidade a respeito de um evento peculiar que acontece ao menos uma vez na vida de praticamente todo ser humano. Contudo, ela adiciona conhecimento relevante sobre a memória ao iluminar de que maneira os dados espaciais captados pelo cérebro se interligam aos sensoriais e podem ser acionados se necessário. Conhecer profundamente esses mecanismos é uma das empreitadas mais urgentes para a ciência, pressionada a achar soluções para doenças em crescimento caracterizadas por danos à capacidade de guardar as lembranças, como o Alzheimer. Vem dessa necessidade o maior interesse pelo déjà-vu.
Até meados do século XIX, o fenômeno estava mais restrito às discussões filosóficas e religiosas — atribui-se a Santo Agostinho (354-430), aliás, a primeira descrição do evento, considerado pelo teólogo como a eclosão de falsas memórias. O avanço de novos campos da medicina, especialmente a neurologia, expandiu as possibilidades de pesquisa, que passaram a buscar respostas dentro do cérebro. Um dos primeiros achados surgiu com os estudos sobre epilepsia, cujas crises são causadas por distúrbios na transmissão dos sinais elétricos cerebrais. Descobriu-se que os pacientes nos quais o desequilíbrio acontece no lobo temporal têm mais episódios de déjà-vu. Depois, viria a explicação: a região é responsável pelo processamento das informações visuais, auditivas e sensoriais e também pela organização das lembranças. Estava localizado o ponto onde tudo acontece. Agora, conhece-se um de seus gatilhos. Assim, devagar, o mistério fica cada vez menor — e o fascínio, maior.
Publicado em VEJA de 19 de outubro de 2022, edição nº 2811