Peguei Covid-19 possivelmente numa viagem ao Recife em março, para acompanhar a seleção sub-18, que coordeno. Embarquei com jogadores e membros da comissão técnica da CBF, e seis se infectaram. Mas fui eu que apresentei, de longe, o quadro mais grave. Nunca tinha me sentido daquela maneira: sem nenhum olfato nem paladar, febre de 39 graus, desidratação, glicose nas alturas e o oxímetro indicando baixa oxigenação — uma avalanche de sintomas que me derrubou. Quando minha mulher, Cleo, que estava fora de casa, veio me buscar para levar ao hospital, espantou-se com minha fraqueza. Ela jamais tinha me visto daquele jeito. Mal conseguia respirar. Para se ter uma ideia, desmaiei duas vezes no curto caminho até a garagem. Dois porteiros ajudaram Cleo a me pôr no carro. De lá, fui direto para a emergência, onde começou uma dura batalha pela vida.
É estranho flertar com a morte desse jeito. Pensava: “Ainda tenho muito que viver” — e vinham trechos da minha existência na cabeça, o casamento, os filhos, o futebol. Era como um filme meio difuso, sem ordem cronológica. Passei dezessete dias no hospital, cinco deles entubado e sedado, sempre na unidade de terapia intensiva, já que o caso era de alta gravidade. Estava muito agitado, às vezes acordava aos berros, dizendo que queria fugir do hospital. Por isso decidiram me amarrar na cama, para que não me machucasse. Recebia visitas rápidas, da minha mulher e de meus dois filhos mais velhos — o caçula, de 7 anos, não podia entrar. Eles me contaram depois quanto eu, atado à cama, gritava com médicos e enfermeiros, totalmente fora de mim. Conforme fui acordando e melhorando, voltei à consciência e só aí entendi o que tinha me acontecido.
Meu passado de atleta foi fundamental para sair dessa. Não só pela boa memória física que o corpo traz, mas também pelo hábito de se impor metas e controlar o psicológico diante de uma adversidade. Já estava melhor, respirando sem o tubo de oxigênio, quando ia mentalmente de um objetivo para o imediatamente seguinte: se me tiravam uma sonda, eu me concentrava na próxima; um bom raio X era uma alegria, e já me preocupava com o resultado do que viria depois. Essas pequenas e gradativas vitórias foram essenciais para que eu recobrasse o ânimo e o vigor. Por mais que não jogue profissionalmente há muitos anos, vencer um campeonato à base de um passo após o outro, com foco máximo, é a história da minha vida, o modo como eu funciono. Assim participei de três Copas do Mundo e fiquei anos na Europa. O atleta está sempre em busca de se superar — e foi o que fiz naquele hospital. Saí na véspera do meu aniversário, uma celebração à vida como nenhuma outra.
A caminho de casa, avistei coisas simples da janela — carros, prédios, pessoas — e elas pareciam ter um novo sentido, como se eu as estivesse reconquistando. Experimentei também nesses dias uma sensação de ser alguém querido e admirado: mensagens de todos os continentes chegavam repletas de palavras de afeto e torcida pela minha recuperação, uma corrente de solidariedade que me tocou fundo. Comecei a refletir sobre quanto eu tenho, entre família, amigos e carreira, e sobre a chance que ganhei de seguir em frente. Renovei a fé na vida e quero aproveitá-la mais. Estava muito acima do peso, e ainda estou, mas deixei o hospital 20 quilos mais magro e vou me empenhar para manter isso, ficar com a saúde em dia, porque agora eu sei: sem ela, você não é nada. Não estou 100% recuperado. Faço fisioterapia para a reabilitação plena do pulmão e para os músculos. Caminhar ou subir escadas dá um tremendo cansaço. Depois de tudo o que sofri com essa doença perigosa, que pega a pessoa de jeito de uma hora para a outra sem dar aviso, digo de todo o coração: cuidem-se.
Branco em depoimento dado a Caio Saad
Publicado em VEJA de 5 de maio de 2021, edição nº 2736