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Um passo decisivo

Reitor da USP defende sistema de cotas, acha que a educação precisa ser mais valorizada pelos brasileiros e prega choque de modernidade no ensino superior

Por Monica Weinberg e Roberta Vassallo
Atualizado em 4 jun 2024, 17h17 - Publicado em 18 Maio 2018, 06h00
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  • Poucos conhecem tão bem a Universidade de São Paulo quanto o atual reitor, o engenheiro Vahan Ago­pyan (turco de nascimento), de 66 anos. Em 1970, ele ingressou ali como estudante da Escola Politécnica e só deixou o câmpus em breve janela para concluir seu doutorado no King’s College de Londres. No comando há cinco meses, chegou em tempos difíceis, de orçamento apertado, e imbuído de uma missão complexa: ajustar a antiga sala de aula às demandas do século XXI. Mais prestigiada universidade da América Latina, a USP tem ainda o desafio de se aproximar das melhores do mundo, tema que Vahan aborda na entrevista que concedeu a VEJA.

    Por que a USP nunca aparece entre as melhores universidades do mundo nos rankings do ensino? Os rankings têm o mérito de fornecer parâmetros que permitem a comparação de diversos critérios acadêmicos e ajudam a nos situar perante os outros. Mas é preciso observar que há inúmeras formas de medir a excelência — tanto que os resultados variam de acordo com quem faz a lista. No geral, o Brasil perde pontos, e a USP também, por contar com um número menor de alunos e professores vindos de fora. Obviamente, a abertura ao exterior é bem-vinda para qualquer instituição de ensino superior, e queremos cada vez mais isso, mas, em nossa ordem de prioridades, há medidas que vêm na frente.

    Por exemplo? Se estou diante de uma escolha entre contratar um Neymar da academia mundial e injetar mais dinheiro em um laboratório já existente com uma dezena de ótimos profissionais, fico com a segunda opção. Com isso, eu sei, caímos alguns pontos no ranking global, mas acho que o impacto será mais abrangente para a universidade. Não, ainda não estamos entre as melhores do planeta, mas em certas áreas já encontramos o topo, como na agronomia, na odontologia e em algumas engenharias.

    A China, que conseguiu avançar no ensino superior e emplacar duas universidades entre as trinta melhores do mundo, é um exemplo inspirador? A China tem uma situação bem diferente da do Brasil nesse campo: oferece cursos em inglês, contrata prêmios Nobel e se insere no jogo da excelência com um volume incomparável de dinheiro. O país pulou de 1 200 para 2 000 universidades em poucos anos, e foi além: 100 delas vêm recebendo um aporte fantástico de recursos, o que pode ajudá-las a chegar ao panteão da qualidade.

    A diferença entre Brasil e China está no dinheiro que o governo de cada país reserva às universidades? Não é apenas isso. A China tem uma cultura de valorização da educação que faz com que a sociedade também contribua com as universidades. A Escola Politécnica, na USP, já conta com um sistema em que ex-alunos doam dinheiro por meio de um fundo. Nesse caso, há o ganho financeiro, claro, mas também o da reaproximação de um monte de cabeças talentosas, formadas neste câmpus, com a universidade. É uma turma que retorna com ideias trazidas de fora dos muros da academia, o que é essencial para qualquer instituição de ensino e pesquisa.

    “A legislação brasileira inibe as doações, mas a questão não é só essa. Doar à Harvard dá mais prestígio, não dá? Alguns ex-alunos mudaram essa lógica e agora investem na USP”

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    Por que tantos brasileiros fazem doações a universidades americanas e não às daqui? Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, no Brasil é preciso pagar imposto sobre doações, o que certamente inibe a iniciativa. Mas a questão não é só de legislação, não. Doar à Harvard dá mais prestígio, não dá? Mas temos ex-alunos que, com o tempo, acabaram ficando com certa vergonha de priorizar universidades do exterior e passaram a investir na USP.

    A USP adotou as cotas para estudantes negros e de baixa renda uma década depois de outras universidades públicas. Por que a demora? Nós fomos mais cuidadosos. Há mais de dez anos, começamos a abrir o espectro de alunos dando um bônus na nota aos oriundos de escola pública e, aos poucos, as pessoas no câmpus ganharam confiança na ideia de que a inclusão não seria um obstáculo à qualidade nem levaria à criação de um grupo à parte, segregado, que não conseguiria acompanhar o restante da turma.

    A implantação das cotas confirmou a confiança depositada nelas? A nota de corte para o ingresso na universidade continuou alta mesmo para os cotistas, mas, como é uma política recente, ainda não consolidamos uma pesquisa para saber o desempenho deles.

    A observação dos professores permite avançar em alguma conclusão? Sabemos que os que entram via cotas são bons alunos, gente talentosa que talvez tivesse ficado no meio do caminho não fosse o empurrão na entrada. Uma parcela deles, porém, revela lacunas por terem vindo de escolas em que receberam uma base mais fraca, especialmente em português e na matemática básica. Por isso oferecemos cursos de reforço nessas áreas. Está claro que, para a cota dar certo, não podemos deixar o aluno à própria sorte.

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    Muita gente apostava que a qualidade das universidades cairia com a implantação das cotas e errou. O senhor fazia parte do rol dos céticos? Nunca encarei as cotas como um favor, como uma medida assistencialista, mas como uma possibilidade de a universidade ganhar com isso, tomando-se evidentemente os cuidados necessários. Considero a abertura das salas de aula a estudantes de diferentes origens um passo decisivo na busca por uma instituição moderna. O papel das grandes universidades neste século, afinal, é formar gente capaz de liderar mudanças e, para tal, os jovens não podem estar circunscritos a um universo limitado de experiências. Eles precisam tomar contato com diversas realidades, ter um olhar abrangente, amplo. As instituições de ensino superior de alto nível estão seguindo mundo afora essa mesma trilha, pescando alunos brilhantes de todos os estratos.

    “As cotas não são favor ou assistencialismo, mas uma maneira de a universidade recrutar ótimos alunos e avançar. Abrir a sala de aula a estudantes de origens diversas é um passo decisivo”

    Em sua opinião, as cotas devem ter prazo para terminar? A cota é, por natureza, uma política compensatória. Portanto, a ideia é que um dia a compensação não se faça mais necessária. O abandono gradativo dessa política, porém, vai depender daquilo que ela veio compensar — a baixa qualidade do ensino básico a que a maioria das pessoas tem acesso.

    As universidades estão conseguindo atender às demandas deste século ou pararam no tempo? Por minha experiência e observação, digo que está sendo difícil para as universidades, inclusive a USP, fazer a transição de um mundo dividido por disciplinas estanques, que pouco conversavam entre si, para uma lógica multidisciplinar, em que os assuntos se conectam o tempo todo e os profissionais de diversas áreas precisam interagir. Minha geração, afinal, é monodisciplinar. Para incentivar pesquisas feitas sob essa nova abordagem, a USP tem oferecido benefícios para alunos e professores, mas a verdade é que eles ainda não se sentem confortáveis. Estamos falando aqui de uma nova maneira de pensar.

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    A sala de aula está mudando? Lentamente, sim. Estamos dando cada vez mais espaço às disciplinas básicas e fundamentais das várias áreas e deixando o conhecimento específico como uma opção para o aluno que queira se aprofundar nele nos períodos avançados. Em alguns cursos de engenharia, por exemplo, as disciplinas básicas vão até o 3º ano, depois vêm as aplicadas, e o 5º ano fica à escolha do estudante, a depender daquilo que queira fazer da vida. Na década de 70, aprendi a fazer cálculos de forma exaustiva na faculdade de engenharia, até que, quando me formei, o microcomputador já era uma realidade e tudo mudou. Imagine agora, com a pressa do século XXI. Precisamos encarar o fato de que mesmo as carreiras de hoje podem desaparecer em dez anos. E os estudantes precisam estar preparados para esse cenário.

    Em geral, os alunos chegam à USP preparados para a complexidade do ensino superior? Temos um vestibular disputadíssimo, que se encarrega bem de fisgar jovens cérebros. Agora, todos os estudantes, daqui e de qualquer outra universidade brasileira, vêm de um ensino médio que precisa urgentemente mudar, e parece que vai. Não é razoável que os alunos tenham de estudar doze, quinze matérias justamente numa era em que a chave não está mais no armazenamento do conteúdo. A escola deve se ajustar aos novos tempos. Sendo ainda tão pouco atrativa, estamos matando talentos aos 11, 12 anos.

    O vestibular também precisa mudar? É claro. A prova de ingresso nas universidades vai ter de mudar.

    A USP também demorou a aceitar o Enem. Afinal, está funcionando? Sim. A Fuvest, nosso vestibular de entrada, exige um pouco mais de conhecimentos específicos, mas, no final das contas, as duas provas são capazes de rastrear os melhores estudantes. E, com o Enem, ganhamos a possibilidade de atrair talentos do Brasil inteiro.

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    O senhor andou se queixando do fato de a USP arcar com quase todos os gastos do Hospital Universitário. Em suas palavras: “Não somos uma entidade assistencialista”. O que quis dizer exatamente com isso? Não acho certo desviarmos recursos de ensino e pesquisa para mantermos sozinhos um hospital que atende a população do estado inteiro. O mais justo é dividir a conta com o estado, que, aliás, também deveria ajudar nos custos com a assistência estudantil, incluindo aí acomodações e restaurantes. Esses gastos subiram muito com as cotas.

    Alguma chance de o pleito ser atendido? Sim. O governo está sensível.

    A USP chegou em 2014 a um déficit de 1 bilhão de reais. A situação ainda é crítica? Hoje não temos nenhuma folga no orçamento, vivemos contando dinheiro, mas saneamos o caixa. Suspendemos contratações, lançamos planos de demissões voluntárias e passamos uma faca nos custos fixos. Houve um descontrole no passado, com aumentos vertiginosos nos salários quando o ICMS estava em alta. Com a crise no país, isso virou um problema.

    A crise das universidades federais é ainda pior. Por quê? Porque elas estão engessadas por uma legislação que não lhes dá autonomia administrativa, algo que a USP tem. Quer dizer que elas não podem fazer o próprio planejamento. E planejar tem tudo a ver com produtividade. Se defino que uma pesquisa deve durar três décadas e cumpro a meta, ela terá mais chance de prosperar. É assim, a longo prazo, que se semeia um Prêmio Nobel.

    Publicado em VEJA de 23 de maio de 2018, edição nº 2583

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