Às 8h30 desta quarta-feira, os olhos do Brasil estarão voltados para uma sala de 115 metros quadrados localizada no 3º andar da sede do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), em Porto Alegre. Ali, estará sendo escrito o que pode vir a ser o derradeiro capítulo da biografia do ex-presidente Lula. Os três desembargadores da 8ª Turma vão decidir se acolhem ou não o recurso do petista contra a sentença do juiz Sergio Moro, que o condenou a nove anos e seis meses de prisão em regime fechado. Dependendo do resultado, o ex-presidente poderá ter sua carreira política encerrada da maneira mais melancólica possível — preso e impedido de disputar qualquer cargo eletivo. O ex-presidente também pode ser absolvido, e, caso isso aconteça, terá argumentos para sustentar que é vítima de uma implacável perseguição judicial promovida por delegados, procuradores e magistrados mal-intencionados. Qualquer que seja a decisão, da pequena sala de Porto Alegre vai emergir uma passagem importante da história recente do país. Afinal, Lula é o líder das pesquisas eleitorais sobre a corrida presidencial.
A Lava-Jato quebrou um paradigma: o de que a lei era incapaz de alcançar os poderosos. Em quase quatro anos de investigação, políticos e empresários envolvidos em corrupção foram caindo um a um, num dominó que o país nunca tinha visto. Apontado como o chefe da quadrilha que tomou de assalto os cofres da Petrobras, Lula é o maior expoente dessa constelação. Foi condenado por ter recebido como suborno um apartamento avaliado em 1,3 milhão de reais — uma ninharia diante dos 270 milhões de reais que delatores disseram ter repassado a ele como dividendos de propina e caixa dois, mas que pode lhe render uma condenação pesada o suficiente para fulminar sua carreira. Na manhã do dia 24, os desembargadores João Pedro Gebran Neto, Leandro Paulsen e Victor Laus vão definir o futuro do ex-presidente e, em alguma medida, estarão moldando a solidez democrática do Brasil.
Discretos, os três desembargadores não dão entrevistas, não gostam de fotografias, não falam fora dos autos. Os autos, no entanto, falam por eles, e é isso que preocupa o ex-presidente. Na terça-feira 16, Lula voltou a atacar a Justiça e defendeu a demissão do juiz Sergio Moro. Também dirigiu petardos ao presidente do TRF4, desembargador Thompson Flores, mas evitou críticas diretas aos três juízes que julgarão seu caso. “Não vou falar mal dos juízes de Porto Alegre porque não os conheço. Não posso julgar pessoas que não conheço”, disse. Durante o processo, a defesa do ex-presidente investiu várias vezes contra o desembargador João Pedro Gebran, o relator de todos os recursos da Lava-Jato no TRF4, sob a alegação de que ele não era isento para julgar em função de sua amizade com o juiz Sergio Moro, de cujos filhos seria padrinho. Gebran respondeu nos autos: “Não sou padrinho de qualquer dos filhos do juiz de origem, tampouco este é padrinho de qualquer um dos meus filhos”.
[vr url=https://preprod.veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2018/01/stf_360.jpg view=360]
VEJA fez um levantamento de todos os processos da Lava-Jato julgados até agora pela 8ª Turma. Os números, de fato, são pouco animadores — para os criminosos. Dos 113 condenados pelo juiz Moro, apenas cinco conseguiram reverter a condenação no TRF. Isso representa menos de 5% do total. Mais: em 76 casos as penas aplicadas por Moro foram mantidas ou até ampliadas. Somente dezesseis réus tiveram êxito em reduzir suas penas. O rigor tem sido uma marca dos julgadores da segunda instância. Um exemplo é José Dirceu, ex-ministro e braço-direito de Lula. Ele foi condenado pelo juiz Moro a vinte anos e dez meses de prisão, recorreu ao TRF na tentativa de anular a condenação e se deu mal. Sua pena foi aumentada para trinta anos e nove meses. Podia ter sido ainda pior: voto vencido, o desembargador João Pedro Gebran propôs que o petista ficasse atrás das grades por mais de quarenta anos.
Escolhido pela ex-presidente Dilma Rousseff em 2013, o paranaense João Pedro Gebran, de 53 anos, é considerado o mais duro da trinca de julgadores e criticado pelos advogados por raramente atender a pedidos de réus. “Moro ainda tem um coração bom porque eventualmente concede algum habeas-corpus. Gebran não”, diz um juiz que acompanha o dia a dia do tribunal. Gebran é autor dos votos que orientaram as mais longas punições da Lava-Jato, como no caso de Renato Duque, ex-diretor da Petrobras. Ele foi condenado a vinte anos de prisão, recorreu e teve a pena ampliada para quase 44 anos de prisão. “A culpabilidade deve ser considerada bastante elevada, na medida em que se trata de servidor público de altíssimo escalão, responsável por administrar a maior empresa nacional, movimentando bilhões de reais em contratos, sendo pessoa na qual tinha (ou deveria ter) sido depositada elevada expectativa para bem gerir o patrimônio público.”
As condenações do desembargador costumam vir acompanhadas de duras considerações, principalmente quando ele se refere a políticos. Ao votar pelo aumento da pena de José Dirceu, Gebran foi categórico. Segundo ele, a culpa do ex-ministro era elevada porque “tratava-se de pessoa com alta escolaridade e ganhos bastante razoáveis, compreendendo perfeitamente o caráter ilícito de sua conduta, tendo ainda ampla possibilidade de comportar-se em conformidade com o direito”. Afeito a superlativos, Gebran classificou logo em seus primeiros votos a Lava-Jato como uma operação de dimensões “estratosféricas” e “amazônicas”. Um trecho que aparece em quase todas as suas sentenças diz o seguinte: “Na medida em que a operação se desenvolve, cada vez mais fatos são descobertos, envolvendo novos personagens e núcleos, podendo-se comparar os esquemas de corrupção a um câncer, de alto poder lesivo e considerável capacidade de se espalhar”.
Dos três desembargadores, Gebran também é o que mais recorre a teorias jurídicas estrangeiras, como a doutrina da cegueira deliberada, segundo a qual um réu pode ser condenado por aquilo que escolheu não enxergar. Em mais de um caso, admitiu até a possibilidade de penalizar réus apenas com base na palavra de delatores. Para ele, a condenação calcada em depoimentos de colaboradores é possível desde que vários deles deem versões semelhantes contra o mesmo investigado. No processo que será julgado na quarta-feira, há dez depoimentos de delatores acusando o ex-presidente Lula de conhecer, participar e se beneficiar do esquema de corrupção na Petrobras.
Revisor das ações, o gaúcho Leandro Paulsen, de 47 anos, o segundo desembargador a se pronunciar nos julgamentos, é autor dos votos que levaram à absolvição do ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto em dois processos. Também nomeado para a corte pela ex-presidente Dilma, ele não é um juiz benevolente. Ao contrário: sempre atribui suas absolvições a fragilidades gritantes na coleta de provas pelo Ministério Público. Em suas decisões, deixa claro que não admite a possibilidade de delações serem usadas como única prova para condenar qualquer suspeito. Foi esse argumento, aliás, que orientou a primeira absolvição de Vaccari, em junho de 2017. Disse ele: “O conteúdo amealhado ao longo da instrução do presente processo comprova materialmente o repasse de propina ao PT (…) mas, em relação ao então tesoureiro da agremiação, consiste apenas na versão dada pelos réus colaboradores sem qualquer prova de corroboração”. Vaccari fora condenado por Moro a quinze anos e quatro meses de prisão por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e associação criminosa.
Três meses depois, em novo processo contra o ex-tesoureiro petista, novamente o desembargador optou pela absolvição, e teceu críticas ainda mais duras ao trabalho dos acusadores: “O caso concreto em análise encontra ainda menos lastro probatório para condenação criminal. (…) Nenhum depoimento apresentado pelos agentes colaboradores sequer diz respeito aos fatos sub judice, assim como inexiste prova material de corroboração a dar apoio às declarações. Não é possível a aplicação do denominado ‘direito penal do autor’, no qual a condenação é lastreada exclusivamente nas características pessoais do agente, independentemente da existência de prova”. Os petistas comemoraram o veredicto. A decisão dos desembargadores demonstraria que a Lava-Jato não passava de uma conspirata dos procuradores e do juiz Moro. Como não havia provas de que Vaccari arrecadava propina para o partido, estava quebrada a corrente que ligava o ex-presidente Lula ao esquema de corrupção na Petrobras.
A euforia durou menos de dois meses — e morreu na ponta da caneta do mesmo desembargador Paulsen. Em um terceiro processo, no qual fora condenado a dez anos por receber 4,5 milhões de dólares em nome do PT para financiar a campanha de Dilma Rousseff, Vaccari recorreu ao TRF, mas, dessa vez, sem êxito. Paulsen escreveu: “Agora, nesta terceira ação criminal, pela primeira vez, além das declarações de delatores, há depoimentos de testemunhas, depoimentos e, especialmente, provas de corroboração apontando no sentido de que João Vaccari Neto é autor de parcela dos crimes de corrupção especificamente descritos na inicial acusatória”. Com o voto de Paulsen, o tesoureiro teve a pena elevada para 24 anos de prisão.
O terceiro desembargador é um ex-integrante do Ministério Público. Indicado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o catarinense Victor Laus, de 54 anos, é considerado o mais garantista dos três julgadores e o principal foco de divergência em relação a Gebran. Nos julgamentos, não admite condenar ninguém se houver qualquer dúvida, ainda que mínima, sobre a culpa do suspeito. “Se, no momento do recebimento da denúncia, prevalece o interesse da sociedade para apuração da infração penal, ocasião em que se apresenta suficiente a prova da materialidade e indícios da autoria, diversa é a fase do julgamento, em que deve preponderar a certeza. Impera a aplicação do princípio in dubio pro reo”, escreveu logo no primeiro processo da Lava-Jato, que julgava um grupo de doleiros. Detalhista, ele costuma interromper os advogados se uma informação citada pelos defensores não estiver nos autos. Não raro, suspende os debates com pedidos de vista. Na Lava-Jato, é o único que já paralisou o julgamento de recursos para estudar melhor o tema. Para se blindar de críticas quanto a eventual demora em devolver um processo, recorre à definição do relator Gebran segundo a qual a Lava-Jato atingiu “dimensões amazônicas”.
Ao julgar, Laus sempre leva em conta o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema em discussão. Ele rejeitou, por exemplo, aumentar a pena de um doleiro com base na alegação de que este teria personalidade voltada para o crime. Na época, citou o STJ, que exigia que isso só era possível se houvesse laudos para atestar as condições psicológicas do réu. Quando o tribunal reviu essa exigência, o desembargador passou a adotar a nova interpretação. Nos julgamentos da Lava-Jato, ele também só considerou a possibilidade de decretar a prisão após julgamento em segunda instância depois que seu próprio tribunal, seguindo interpretação do Supremo, aderiu à tese. Desde então, em seus votos pró-condenação consta que, “encerrada a jurisdição criminal de segundo grau, deve ter início a execução da pena imposta ao réu, independentemente da eventual interposição de recurso especial ou extraordinário” em tribunais superiores. Traduzindo: Lula, se condenado, deveria ser preso assim que julgados eventuais recursos no TRF.
Publicado em VEJA de 24 de janeiro de 2018, edição nº 2566