“Trânsito é caro”
Defensor da cobrança de pedágio nas cidades, o economista americano diz que essa é a única maneira de convencer a população a abrir mão do carro
O especialista em economia urbana, Edward Glaeser, de 51 anos, é, acima de tudo, um entusiasta da vida nas metrópoles, sem as quais, acredita, o desenvolvimento humano não seria possível. Contudo, o professor da Universidade Harvard admite, no prefácio à edição brasileira de seu livro O Triunfo da Cidade (BEI~, 2016), que a urbanização em massa traz consigo questões incontornáveis — entre elas, o problema da mobilidade. “Ele não mata como uma epidemia de cólera ou uma onda de violência, mas desperdiça a vida das pessoas minuto a minuto”, escreve. “A forma mais sensata de conter o uso exagerado das limitadas ruas da cidade é a tarifação do congestionamento. São Paulo terá melhores condições de tráfego quando as pessoas pagarem pelos custos sociais do congestionamento e da poluição que criam”, defende Glaeser na obra. O economista foi entrevistado pela primeira vez nas Páginas Amarelas de VEJA em março de 2012, quando veio ao Brasil como conferencista do evento Arq.Futuro, realizado no Rio. Na época, já falava sobre a necessidade do pedágio urbano e da alta densidade demográfica como fatores fundamentais para garantir a boa mobilidade nas metrópoles. “Atualmente, os governantes estão muito preocupados em regular o ato de construir, limitando a altura dos prédios. Isso não resolve nada — pelo contrário”, disse ele ao voltar a conversar com a revista, agora via Skype. “O mais eficiente é regular o ato de dirigir”, insistiu.
Cidades de países em desenvolvimento precisam lidar com criminalidade, pobreza, déficit habitacional. Em tal cenário, dá para priorizar a mobilidade? Não digo que cuidar da mobilidade seja mais importante do que lidar com a violência. Mas tem extrema relevância. O número de horas gastas no trânsito equivale a uma perda econômica extraordinária. E a separação entre as moradias e os locais de trabalho, ou entre áreas pobres e ricas, agravada pelo nó da mobilidade, gera outros problemas, como a sensação de isolamento e exclusão.
O problema da mobilidade sempre se estende a outras mazelas urbanas? Essa era a preocupação de meu antecessor na área de economia urbana na Harvard, John Kain (1935-2003). Ele estudou como o deslocamento espacial dos afrodescendentes americanos para os lugares com oferta de emprego levou a uma série de problemas sociais.
“Se a população economicamente ativa de um país gasta em média duas horas por dia apenas para se deslocar, 20% do PIB está sendo jogado fora. E há todas as perdas indiretas”
Qual a conexão entre a mobilidade e o desempenho econômico de uma cidade? Mais direta, impossível. Por alto, se a população economicamente ativa de um país gasta em média duas horas por dia apenas para se deslocar, 20% do PIB está sendo jogado fora. E há todas as perdas indiretas, já que, presas no trânsito, as pessoas deixam de interagir e encontrar novas oportunidades. Isso ocorre igualmente em cidades ricas e pobres, não se restringe a países em desenvolvimento.
O senhor é um grande defensor do pedágio urbano. Por quê? Porque causar trânsito precisa custar caro, ou cada um sempre optará pelo transporte individual. Singapura instituiu essa medida na década de 70. Começou com uma taxa pela circulação em determinado perímetro durante o dia, evoluiu para um pagamento eletrônico toda vez que se passava por portais instalados em lugares estratégicos e agora há rastreamento por GPS da localização dos veículos e o registro dos horários para gerar uma tarifa cobrada automaticamente. É uma tecnologia muito eficiente e que não produz tráfego, pois não depende de cabines nem de cancelas. Isso importa se pensarmos que, em breve, existirão mais veículos autônomos circulando. Se eles não forem taxados, os congestionamentos vão aumentar. A presença dos carros autônomos pode justificar a criação dessa cobrança em cidades que nunca se preocuparam com pedágio urbano. E está claro que a solução para acabar com o trânsito não passa pela construção de mais vias. Já se provou que dobrar o número de avenidas dobra o número de motoristas. Por outro lado, é preciso atender quem não pode pagar o tributo. Essa foi a abordagem de Ken Livingstone quando administrou Londres (entre 2000 e 2008). O montante arrecadado pelo pedágio reverteu-se em melhorias no transporte coletivo.
Trata-se de uma medida bastante impopular, não? Como Singapura e Londres conseguiram implantá-la? É verdade. E é justamente porque não sou candidato a prefeito que posso defendê-la (risos). Em Singapura, a implantação correu bem porque não havia tantos motoristas nos anos 70. Mais recentemente, Estocolmo deu um exemplo interessante. Como a população era contrária à medida, implementou-se o pedágio urbano primeiro de forma experimental, durante quase um ano. Depois, foi feito um referendo, que acabou por aprovar a cobrança definitiva. Em Londres, o prefeito passou a lei logo no começo de seu primeiro mandato, o que lhe deu quatro anos para provar a eficácia do sistema. E ele se reelegeu. Esses dois últimos casos mostram que, num período relativamente curto, os benefícios são percebidos. O que não emplacou, e talvez tenha impedido o terceiro mandato de Livingstone, foi a ideia de ampliar ainda mais o perímetro de cobrança. Porém seu sucessor manteve o formato original, ou seja, não revogou o que havia sido feito até ali.
No Brasil, o planejamento das cidades seguiu a lógica do transporte individual, e o automóvel sempre foi considerado um símbolo de status. Mudar comportamentos em prol da mobilidade é factível a curto prazo? Certamente não. Nos EUA também é assim; somos uma nação de motoristas. No entanto, se queremos que as coisas melhorem no futuro, temos de agir agora.
“Precisamos de prédios altos, densamente ocupados, em regiões com moradias próximas das empresas, para que os habitantes possam andar no máximo 1,5 km até o trabalho”
Então, o que fazer a curto, médio e longo prazos? A curto prazo, melhorar o sistema de ônibus, mais flexível e econômico que os de trens e metrôs, tornando-o mais eficiente, reservando-lhe faixas exclusivas e fiscalizando o uso indevido delas, que deve estar sujeito a multas altíssimas. A Cidade do México vem fazendo isso muito bem. Todo e qualquer espaço disponível ou a ser criado, eu converteria em novos corredores. Além da implantação de pedágios urbanos, estamos falando então de tecnologia, como micro-ônibus autônomos.
Faz sentido otimizar linhas e, com isso, induzir mais baldeações em cidades onde os horários dos ônibus não merecem confiança? Muitas vezes, os ônibus atrasam porque se encontram presos num congestionamento. De novo, a solução é criar mais e mais corredores. Disponibilizar a localização dos ônibus em tempo real para que os usuários acompanhem o itinerário por meio de aplicativos de mobilidade também ajuda; entretanto esses apps devem prever canais de reclamação para monitorar atrasos e aperfeiçoar o sistema. A transparência de dados é crucial.
Iniciativas da economia compartilhada, como Uber e Cabify, causam impacto positivo ou apenas acarretam mais trânsito? Num cenário em que cada um pagasse pelo trânsito gerado, esses serviços seriam perfeitos. Todavia, sem essa ferramenta eles pioram os congestionamentos, embora muitas vezes reduzam o número de carros particulares em circulação. Tendo a rejeitar regulamentações que atinjam apenas esses veículos. É preciso taxar todo mundo, considerando fatores como as versões pool do serviço, ou seja, um mesmo itinerário compartilhado por mais usuários. Isso, sim, gera impacto positivo.
E os pedestres? Eles colaboram para a mobilidade urbana, contudo são negligenciados nas políticas públicas do setor. Essa é a tragédia de muitas cidades latino-americanas e de países em desenvolvimento em geral. Mas o ponto crítico do deslocamento a pé não reside nas políticas de transporte, e sim nas políticas de uso do solo. Precisamos de prédios altos, densamente ocupados, em regiões com moradias próximas das empresas e dos negócios, para que os habitantes possam andar no máximo 1,5 quilômetro até o trabalho. A ideia é combinar o deslocamento horizontal a pé e o vertical, por meio de elevadores. Isso nos faz lembrar que mobilidade não tem a ver só com o que transita pelas ruas, e sim com o planejamento das cidades e de suas construções. Se há uma mensagem que eu gostaria de passar é esta: a cidade densamente povoada é a única que permite boa mobilidade.
Como superar a descontinuidade das políticas públicas de uma gestão para outra? Antes de falar sobre a descontinuidade entre gestões, não entendo por que os prefeitos brasileiros deixam o cargo para concorrer a outro. Nova York passou 150 anos sem perder um prefeito para outra esfera de governo. Thomas Menino governou Boston por vinte anos (1993-2014); essa foi a vida dele. Ser prefeito de uma cidade como São Paulo deveria ser motivo de orgulho para alguém até o fim de seus dias. Talvez os prefeitos brasileiros não tenham tanto poder quanto deveriam; há diferenças culturais e políticas. Estamos, porém, falando de uma figura importantíssima, que dita políticas capazes de influenciar o futuro econômico do país como um todo.
O senhor é um entusiasta da vida urbana. Consegue manter esse espírito mesmo preso em congestionamentos nas metrópoles que visita? Embora as cidades sejam o melhor ambiente para o desenvolvimento humano, elas vêm com seus demônios. Combatê-los é responsabilidade do governo. Precisamos de administrações mais efetivas, com leis que contemplem o uso eficiente do solo, a mobilidade urbana e tantas outras questões que surgem quando pessoas se reúnem num mesmo território. Abrir mão da alta densidade demográfica nas metrópoles jamais vai resolver esses problemas — ao contrário, vai apenas agravá-los.
Publicado em VEJA de 5 de setembro de 2018, edição nº 2598