O professor circula entre os alunos do liceu de artes de Barcelona. Corria o ano de 1895, e mesmo seu olhar moldado pelos cânones acadêmicos não resistiria à vitalidade criativa de um dos pirralhos da turma. Depois de elogiar o pupilo, o mestre se espanta ao saber que ele tem só 14 anos. “Jesus Cristo!”, exclama. O aluno corrige: “Não, Pablo Ruiz Picasso”. O episódio pertence ao vasto anedotário sobre o pintor espanhol — como tal, figura naquela zona cinzenta entre o que teria sido real e o que seria pura lenda na trajetória do mais famoso dos modernistas. Ao reproduzir a história com humor singelo, a série Genius: Picasso — que estreia no domingo 22, às 21h45, no canal National Geographic — demarca a obviedade que justifica seu título.
À distância depuradora do tempo, somente um rematado ranheta não admitiria que Picasso foi um gênio da pintura. Mas não só isso: estava fadado, desde a tenra idade, a ser um medalhão: no raiar dos 30 anos, já havia passado pelas gloriosas fases rosa, azul e cubista; vivia como bon-vivant milionário; sua fama ultrapassava os limites da boêmia parisiense. Ao menos nos quatro de seus dez episódios mostrados com antecedência à imprensa mundial, contudo, a série explora uma peculiaridade que desperta reações menos unânimes. Há uma fissura aparentemente inconciliável entre o jovem, inquieto e sensível Picasso — vivido pelo americano Alex Rich — e o maduro, cruel e ególatra Picasso — encarnado com perfeita tonalidade kitsch pelo espanhol Antonio Banderas, nascido na mesma Málaga de origem do pintor. “Sabemos o que ele dizia e fazia, mas não o que o impulsionava. Foi preciso buscar nas entrelinhas o verdadeiro Picasso”, disse Banderas a VEJA. Parafraseando Jesus Cristo (o verdadeiro!): é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que decifrar esse enigma da história da arte.
Em sua primeira temporada, Genius partiu da biografia do americano Walter Isaacson para tecer um instrutivo painel de como o ser humano rebelde Albert Einstein (1879-1955) moldou o físico genial. A vida do jovem e a do maduro Einstein transcorriam em paralelo, mas era nítida a linha de continuidade do gênio em formação ao totem consagrado. Na temporada que se debruça sobre Picasso, o produtor é o mesmo Ron Howard e a narrativa repete o expediente de entrelaçar a juventude com a maturidade do personagem (embora agora não se beba de nenhuma fonte específica, mas de um amálgama das biografias com livros sobre o pintor). Mas é abissal o contraste entre o gracioso Picasso juvenil de Alex Rich e o celebrado figurão feito por Banderas.
É na juventude que se encontram os eventos decisivos da pulsão artística de Picasso: a morte de sua irmã caçula, Conchita, quando ele ainda era criança e se iniciava no desenho; e o suicídio do melhor amigo, Carlos Casagemas, no momento em que a ascensão irresistível do futuro medalhão já se anunciava. O jovem Picasso reage a essas tragédias com dor e melancolia muito humanas — e a série usa seus quadros famosos para ilustrar como a vida influenciou sua arte (confira abaixo). No fundo, porém, ali já se entrevê a conexão entre suas facetas nova e velhusca: o narcisismo. Picasso crê que a arte é mais importante que tudo, inclusive as pessoas à sua volta. E se julga um portador divino da genialidade: tem certeza de que Deus levou sua irmã porque nunca poderia atender à sua promessa de deixar de pintar se ela sobrevivesse. Picasso estava acima da vida.
TELAS VIVAS
Na série Genius: Picasso, as obras do pintor espanhol ajudam a colorir sua biografia
A VIDA (1903)
O suicídio de seu melhor amigo, Carlos Casagemas, fez Picasso mergulhar na depressiva fase azul. O morto e a namorada que o desprezou são figuras fantasmagóricas na tela do período
MULHER SENTADA DE VESTIDO AZUL (1939)
O pintor fez retratos célebres de suas mulheres, sobretudo de Dora Maar. A série sugere que ele foi distorcendo as feições da fotógrafa à medida que perdia o interesse sexual por ela
GUERNICA (1937)
Avesso à política, ele relutou em fazer a encomenda que seria sua obra-prima. Detalhes como o cavalo que expõe o horror da Guerra Civil espanhola vieram de cenas de sua vida pessoal
No que isso iria desembocar, basta ver a efígie mumificada de Banderas na série para compreender. Picasso não viveu para ver os tempos em que certas celebridades se valem de plásticas e Botox para transformar seu rosto em máscaras supostamente à prova do tempo. Mas seu cabelo lambido para (mal) disfarçar a calvície, as feições endurecidas e o jeito solenemente cafajeste entregam que ele já era, na altura do fim dos anos 30, uma vaca sagrada inebriada pela própria imagem. Como diz Banderas: “Picasso faz o que faz muito bem, e isso lhe dá extrema segurança. Essa segurança, entretanto, vai se transformando em arrogância e egoísmo”. Resultado: apesar da fama e da genialidade, ele amargava a solidão.
A imagem com que Picasso é definido pelo intérprete e conterrâneo revela-se apropriadíssima. Picasso seria como um velho vampiro que precisava de sanguinho novo — ou corpinhos jovens — para dar uma renovada em sua veia artística de vez em quando. Foi assim ao trocar a classuda Marie-Thérèse Walter (Poppy Delevingne) pela fotógrafa Dora Maar (Samantha Colley) — mais tarde, destronada por Françoise Gilot (Clémence Poésy), e assim por diante. Seus retratos de Dora atestam como ele alimentava não só o ego, mas a inspiração com a cafajestice: a namorada ganhava contornos mais ou menos pavorosos conforme variava seu apetite sexual por ela. A série recria ainda o célebre episódio em que Picasso teria estimulado Marie-Thérèse e Dora a se estapearem por ele enquanto pintava Guernica.
Depois do sexo, vamos a um assunto menor para Picasso: a política. Genius flagra-o às vésperas da criação de Guernica, em 1937. A postura do espanhol era mais complexa do que faz crer o fla-flu entre os admiradores, que louvam sua coragem e engajamento contra o nazismo, e os detratores, que o acusam de oportunismo e alienação. Picasso era alguma coisa no meio disso. A princípio, não queria fazer um painel de teor político sob encomenda. Mas se convenceu de que seria um belo passo na carreira e achou uma inspiração genuína: o ataque aéreo contra o lugarejo de Guernica na Guerra Civil espanhola. Na II Guerra, Picasso manteve sua vida de pintor ostentação na França ocupada. Usava das boas relações com oficiais nazistas para não ser preso como artista “degenerado”. Quando o amigo e poeta Max Jacob, judeu e homossexual, foi preso, Picasso negou-se a assinar um abaixo-assinado pela libertação dele, alegando que sua própria liberdade era um símbolo de resistência e seria ameaçada com isso. Gênio difícil.
“Tenho pedaços de Picasso em mim”
O espanhol Antonio Banderas falou a VEJA por telefone, de Los Angeles, sobre a experiência de viver o pintor conterrâneo na série Genius.
O senhor disse que fazer Picasso é uma grande responsabilidade. Por quê? Picasso nasceu em Málaga, minha terra, e isso é um peso. Foi um tipo desafiador: um gênio, mas um homem complicado. Desde os 20 anos, venho fugindo desse papel. Mas, quando surgiu Genius, eu não podia negar a oferta de alguém como (o produtor) Ron Howard. Ron me confessou ontem que sempre fui sua única opção. Só não me disse isso antes para eu não pedir um cachê muito alto.
Como foi sua preparação? Quando rasparam a minha cabeça e as sobrancelhas, eu me tornei uma espécie de tela em branco para pintarem sobre mim o próprio Picasso. Hoje, sinto que tenho pedaços dele dentro de mim.
O pintor foi, nas palavras do senhor, “um planeta de imensa gravidade”. Como assim? Ele atraía pessoas para sua órbita de forma irresistível. Mas, como um vampiro, precisava do sangue fresco de novas companhias. Com o tempo, isso endureceu sua alma.
Picasso era um sujeito solitário? Suas grandezas e misérias têm a mesma fonte. Como artista, ele nunca matou a criança que havia dentro de si: tinha uma curiosidade inata e rompia seu equilíbrio de propósito. Tudo isso são virtudes na arte, mas defeitos na vida pessoal. Picasso não tinha filtros. Simplesmente dizia: “Não gosto mais de você, vá embora”. No fim, o único amigo que lhe restou foi seu barbeiro.
Publicado em VEJA de 25 de abril de 2018, edição nº 2579