Por toda parte, letras brancas em faixas vermelhas anunciam: “Batalha do transplante do arroz”. Na zona rural, sob um sol de 30 graus, homens e mulheres se curvam ou se agacham, trabalhando a terra com ferramentas rudimentares ou com as próprias mãos, transferindo as mudas do solo para a várzea inundada. Um soldado com farda verde-oliva observa tudo, de pé. Nos vilarejos, moradores sentados na rua também recebem ordens de militares, no início e no fim do dia. Essas cenas foram testemunhadas pela reportagem de VEJA em uma viagem ao país mais fechado do mundo, a Coreia do Norte, uma semana antes do encontro do ditador Kim Jong-un com o presidente americano Donald Trump, em Singapura. Ao longo de cinco dias, VEJA percorreu 973 quilômetros de estradas norte-coreanas — um trajeto abrangente, considerando-se que o país mede 909 quilômetros de norte a sul e 570 de leste a oeste, em sua parte mais larga.
A escravidão imposta aos norte-coreanos pela dinastia Kim, no poder há três gerações, desde 1948, sustenta-se em três conceitos usados a todo momento pelo regime. O primeiro é Songun, termo que significa “o Exército em primeiro lugar”. Os militares são não apenas o braço armado do Estado, mas também o centro do poder político e econômico. O segundo é Juche, palavra inventada por Kim Il-sung, o fundador da dinastia, que se refere a um “sistema filosófico” que supostamente põe “o homem no centro de tudo, independente e livre”. Essa “liberdade”, porém, está rigidamente encaixotada em um sistema que tudo controla e que define minuciosamente o papel de cada um na sociedade. A organização social e econômica é sintetizada em outro conceito, com apenas um fonema de diferença em relação ao primeiro: Songbun. A palavra quer dizer “ingrediente” em coreano. Seu significado prático: casta.
Os norte-coreanos são classificados em três grandes castas: o “núcleo”, que ocupa o topo da pirâmide; a “móvel”, que poderia ser chamada de “classe média”; e a “hostil”, condenada ao penoso trabalho no campo e nas cidades menores. Cada uma tem múltiplas subdivisões, segundo um minucioso sistema de pontuação, resultando em cerca de cinquenta categorias.
A vida dos norte-coreanos é uma constante batalha — para usar um termo tão corriqueiro na propaganda oficial do regime — para subir degraus ou escapar do rebaixamento no sistema de castas. É o que se vê na capital, Pyongyang, no domingo, oficialmente o único dia de descanso na semana. Às 6 da manhã, as calçadas, as praças e os parques da cidade, de 3 milhões de habitantes, já têm bastante movimento. Milhares de pessoas com roupas de passeio — homens de sapatos e calça social, algumas mulheres até de salto alto — agacham-se em canteiros para arrancar ervas daninhas com as mãos, podam a grama, carregam baldes para molhar os jardins públicos e varrem as ruas. No início de todas as noites, depois do expediente, que vai das 9 às 19 horas, a rotina se repete. Esse trabalho “voluntário”, assim como todas as atividades cotidianas dos norte-coreanos, é orientado por sua grande obsessão: ganhar pontos, na esperança de subir de categoria ou não cair.
Mas ascender nas castas é praticamente impossível, pois o critério é hereditário. Quem nasceu numa família de tal casta dificilmente é promovido a outra. Kim Il-sung, o patriarca do regime, definiu os critérios, que persistem até hoje. O “núcleo” é composto do ditador, dos descendentes dos criadores do regime e dos combatentes nas guerras contra o Japão (1925-45) e da Coreia (1950-53). Já a casta dos “hostis” é formada pelas famílias dos ex-funcionários da administração colonial japonesa (que durou de 1910 a 1945), fazendeiros, empresários, intelectuais, clérigos e inimigos políticos da ditadura. Os condenados por crimes e seus parentes também são automaticamente rebaixados para a casta dos “hostis”. No meio, a casta “móvel” é ocupada pelos descendentes dos trabalhadores urbanos e rurais do período colonial que não colaboraram com os japoneses. Essa é a faixa que mais se dedica na escola, no trabalho e nas atividades “voluntárias”, na esperança de ganhar pontos e obter empregos melhores. Quem se destaca muito pode até sonhar em entrar para o Exército. Não atingirá patentes elevadas, reservadas ao “núcleo”, mas terá mais oportunidades de cobrar propinas.
Só vivem em Pyongyang os integrantes das castas superior e intermediária. Kim Jong-un tem permitido que jovens que se destacam no interior venham estudar em Pyongyang. Mas eles são obrigados a voltar assim que concluem os estudos.
Tenta-se a todo custo esconder essa desigualdade de quem visita o país, como turista, jornalista ou convidado do regime. Os estrangeiros são proibidos de sair sozinhos e de ter contato direto com os norte-coreanos. Tudo se faz por meio de um guia — no caso de VEJA, duas mulheres. Ao visitante que percebe que se trata de uma sociedade vertical e sem mobilidade social, os guias sofrem para justificar que tal realidade é a expressão nobre do Juche, a ideia do tal “sistema filosófico de liberdade”. VEJA perguntou a uma das guias, por exemplo, o que o governo faz com os preguiçosos, já que não seria justo uns realizarem “trabalhos voluntários” e outros não; uns aceitarem o árduo trabalho do campo e outros viverem no conforto de Pyongyang. Sua resposta cai no vazio: “Não sei, nunca ouvi falar de alguém preguiçoso”.
VEJA foi a uma escola de ensino médio da capital, mas não pôde conversar com os alunos, nem sequer por meio das guias. A programação consistiu em assistir a apresentações musicais. Um grupo de meninas cantou uma canção que dizia: “Estamos muito felizes com o ensino compulsório”. À pergunta sobre por que as alunas afirmavam estar felizes, as guias responderam, com um ar de espanto pela obviedade da resposta: “Elas nasceram num palácio. Como não vão estar felizes? Nós duas também nascemos no palácio”. Para os norte-coreanos, a palavra “palácio” designa coisas tão corriqueiras quanto uma maternidade — chamada de “palácio dos berços” — ou o local onde as crianças praticam esportes e artes depois das aulas — chamado de “palácio das crianças”.
Todo norte-coreano ingressa obrigatoriamente na Liga das Crianças aos 7 anos. Aos 13, vai para a Liga da Juventude e, aos 17, para a Liga dos Trabalhadores. É quando passa a usar compulsoriamente todos os dias, até a morte, um broche com a foto de Kim Il-sung ou Kim Jong-il (ou ambos), respectivamente avô e pai do atual ditador, Kim Jong-un — em coreano, assim como em chinês, o sobrenome vem antes do nome. A partir de 1948, com a repressão religiosa, os norte-coreanos começaram a ter a permissão, ou melhor, a obrigação, de venerar apenas os Kim. O Exército também é enaltecido. “Os soldados são mais eficientes que os civis”, explicou uma guia. “As obras feitas por eles, por exemplo, terminam mais rápido.” Para as mulheres que podem escolher, os requisitos de um bom marido incluem ter servido no Exército, ser membro do Partido dos Trabalhadores e ter diploma universitário. O diploma é menos importante do que ser membro do partido. Mas só os homens de casta superior podem ingressar nele. Os outros permanecem na Liga dos Trabalhadores.
Por toda parte, nas ruas, prédios, lojas, restaurantes e hotéis, há fotos do velho Kim Il-sung (1912-1994), intitulado postumamente “o eterno presidente”, e de Kim Jong-il (1941-2011), “o querido líder”. O atual ditador, Kim Jong-un, é chamado de “supremo líder”. Geralmente, a expressão vem acompanhada de mais um adjetivo, como “caloroso” ou “sábio”, dependendo do contexto.
Nos monumentos, que são muitos, e nas estações de metrô, há alto-falantes que tocam músicas de louvor aos líderes e ao Exército. Uma das canções no metrô — cujas estações são as mais profundas do mundo, porque também servem de abrigo antiaéreo — dizia o seguinte, ao referir-se a Kim Jong-un: “Nosso líder é tão jovem e mesmo assim o amamos tanto”. Além da repetição, a lavagem cerebral da população é buscada por meio do controle absoluto do acesso à informação. Na Coreia do Norte, os celulares só fazem ligações e trocam mensagens de texto. Não existe conexão de internet sem fio. Nos escritórios, os computadores podem ser conectados por cabo para ter acesso a uma rede rigidamente controlada e censurada. Uma semana antes da reunião de cúpula entre Kim e Trump, quando VEJA visitou o país, não houve nenhuma menção ao evento no telejornal das 20 horas nem mesmo em um dos cinco jornais do país — todos estatais. Todas as noites, uma das guias, ávida por notícias, pedia à reportagem da revista que assistisse ao noticiário da Al Jazira para lhe contar sobre o diálogo com os Estados Unidos. O canal do Catar era o único em inglês no quarto do hotel. Dois canais eram chineses e outros dois, coreanos. As guias ficam nos mesmos hotéis que os visitantes, mas seus quartos não têm canais estrangeiros. Apenas depois do fim do encontro em Singapura, os jornais norte-coreanos noticiaram o fato — com páginas recheadas de fotos dos sorridentes Kim e Trump apertando as mãos.
O blecaute de informações e a lavagem cerebral parecem levar a uma atrofia mental. A caminho da zona desmilitarizada, a fronteira entre as duas Coreias, uma guia contava como Kim Il-sung decidiu, em 1925, deixar a China, onde estava exilado com seus pais, para voltar para a Coreia e heroicamente liderar a luta de seu povo contra os japoneses. Alguns minutos antes, a mesma guia havia dito que ele nascera em 1912. VEJA perguntou quantos anos Kim Il-sung tinha quando partiu para comandar a guerra da independência. “Vinte e três”, respondeu ela. Fez-se um silêncio. “Não, 13”, corrigiu, fazendo as contas com os dedos. “Ele era bastante jovem, não?”, observou a reportagem de VEJA. “Era”, concordou a guia, olhando para o infinito. Aos 28 anos, ela parece nunca ter parado para pensar se a história que repete semanalmente aos turistas faz sentido. Na realidade, Kim Il-sung foi treinado pelo Exército soviético, no qual chegou a major, e colocado no poder por Josef Stalin depois que os russos expulsaram os japoneses do norte da península, em 1945 — vinte anos após o suposto retorno heroico do exílio.
Depois do fim da União Soviética, que sustentava a Coreia do Norte com produtos baratos, centenas de milhares de pessoas morreram de fome no país. Isso durou de 1991 ao início dos anos 2000, quando o governo passou a permitir alguma atividade privada. Tudo continua pertencendo ao Estado, mas os camponeses podem plantar hortas ao redor de suas casas. Nas estradas, há um intenso trânsito de agricultores de bicicleta ou a pé, levando verduras para as feiras nas cidades. Esse dinheiro vai para o bolso deles, ao contrário do resultante da venda dos alimentos produzidos nas fazendas estatais. A pequena liberalização estimulou a produção agrícola. O governo também fechou os olhos para o contrabando com a China, que traz alguma prosperidade não só para os sacoleiros mas também para os militares e policiais, que cobram propinas para fazer vista grossa ao tráfico. No trem que liga Sinuiji, na fronteira com a China, a Pyongyang, ao examinarem as caixas, malas e mochilas dos contrabandistas, os guardas pedem alguns presentes. “Você não é obrigado a dar, mas é melhor dar”, disse a VEJA um contrabandista chinês. Com os norte-coreanos, a abordagem é menos sutil.
Segundo dados não oficiais, a renda per capita anual da Coreia do Norte ajustada ao poder de compra não passa de 1 700 dólares (a da Coreia do Sul é de 41 700 dólares). Ainda assim, um cidadão urbano de casta intermediária, a tal casta “móvel”, ganha o suficiente para vestir-se e comer decentemente. Em Pyongyang, o salário médio de quem tem diploma superior está em torno de 400 000 wons, ou 50 dólares. Os norte-coreanos não pagam moradia, educação e saúde. Na ausência da iniciativa privada, todos são empregados do Estado. Quando se casam, a empresa onde o marido trabalha lhe empresta um apartamento perto do escritório. As mulheres também têm emprego, mas muitas vezes precisam percorrer grandes distâncias para chegar ao local de trabalho. A Coreia do Norte é uma sociedade machista. Só os homens podem beber e fumar. E nunca vão para a cozinha.
A passagem de trem, metrô, bonde e ônibus custa apenas 5 wons. Os remédios prescritos pelos médicos são entregues de graça, se a farmácia do hospital os tiver. Se não, é preciso comprá-los. Em Pyongyang, as pessoas em geral se vestem formalmente. Os homens usam calça, camisa e sapatos. As mulheres, saia, blusa, meia-calça e salto alto, além de bolsas chinesas que imitam as ocidentais. Cada peça de roupa custa o equivalente a menos de 1 dólar. Os norte-coreanos não usam camiseta, calça jeans ou tênis.
Os cidadãos recebem tíquetes de alimentação, que podem ser trocados nos mercados a cada quinze dias. Aparentemente, essa cesta básica não é suficiente, já que os supermercados pagos vivem cheios de norte-coreanos. É fácil distingui-los dos turistas chineses pelos broches de seus líderes no peito. A julgar pelos preços anotados por VEJA no maior supermercado de Pyongyang, que estava lotado às 13h30 da terça-feira 5, com uma semana de salário é possível comprar 1 quilo de costela de porco, meia dúzia de ovos, 1 quilo de carne bovina, 1 quilo de maçã e um pacote com vinte fraldas descartáveis. Não se veem gordos na Coreia do Norte, com a notória exceção do ditador Kim Jong-un. Os norte-coreanos comuns comem, nas três refeições, kimchi, um prato barato feito da fermentação de repolho e nabo, ao qual frequentemente acrescentam ginseng, uma raiz medicinal que, dizem eles, protege de doenças, inclusive gripe e câncer.
Os cidadãos comuns não têm automóvel. Altos funcionários do governo andam em veículos oficiais, com motorista. Apenas pessoas premiadas pelo regime, como esportistas que ganharam medalhas internacionais, têm carro privado. Nos cruzamentos de Pyongyang, no fim da tarde, juntam-se no máximo dez automóveis no farol vermelho. Nas principais estradas, eles são tão raros que os ciclistas trafegam despreocupadamente pela faixa da esquerda, na contramão. A Coreia do Norte é um país parado no tempo.
Publicado em VEJA de 20 de junho de 2018, edição nº 2587